Com que vitalidade regressará no próximo ano letivo a "pessoa perdida"1 às escolas do país?
O uso/desuso atual do pronome pessoal vós pelos falantes de português europeu (PE) inquietou-nos, pelo que avançámos com um estudo2 dirigido às camadas mais jovens (porquanto são o presente e o futuro da língua) que pudesse contribuir para a discussão geral que se ouve ou lê aqui e ali.3
No estudo, de 2025, realizado no âmbito das Ciências da Linguagem e apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Centro de Linguística da Universidade do Porto, verificou-se que, diante da instrução «Escreve cada uma das frases seguintes passando o sujeito para o plural e fazendo as mudanças necessárias», os inquiridos optaram mais por recorrer à terceira pessoa do plural gramatical do que à construção «vós+verbo» na segunda pessoa plural gramatical, ou seja, por exemplo, «Tu és fantástico» passou a «Vocês são fantásticos». Isto mostra que grande parte dos falantes entende vocês como pronome natural para direção genérica a um alocutário plural. Por outras palavras, remetendo-se para uma típica conjugação verbal, teríamos, nas posições dos pronomes, eu-tu-ele-nós-vocês/vós-eles.
Na segunda pergunta do questionário – diante de um contexto a que tipicamente se associa alguma formalidade (no caso, o contexto era uma Gala dos Globos de Ouro) – apesar de os falantes optarem mais pelo uso da terceira pessoa do plural, nomeadamente em produções sem sujeito explícito («muito obrigado por estarem aqui», por exemplo) ou mesmo pela produção explícita de vocês («quero agradecer a todos vocês»), verificou-se a existência de alguma produção de vós («perante vós», «agradecer a todos vós»), sem que este uso fosse estatisticamente significativo relativamente à variável geográfica, ou seja, o uso de vós numa situação mais formal não se restringe a determinada(s) zona(s) do país, o que efetivamente evidencia alguma vitalidade global neste tipo de contexto.4
Pelo contrário, o surgimento localizado de algumas produções de vós e de formas verbais de segunda pessoa do plural gramatical em ambiente informal – na terceira pergunta do questionário desenhara-se um contexto de conversa entre amigos – dá nota da existência efetiva de um uso de vós de proximidade.5
No referido estudo, mostrou-se também que a maioria dos falantes inquiridos (89,8% dos estudantes do 4.º e do 12.º ano de várias escolas do país que participaram e 92,9% dos estudantes de ensino superior inquiridos) entendeu – diante das frases 1- «– Vou agora dar-vos as folhas que tendes de ler»; 2- «– Vou agora dar-vos as folhas que têm de ler» e 3- «– Vou agora dar-lhes as folhas que têm de ler» – que «a frase mais normal» era a produção construída com a "mistura" de paradigmas (complemento indireto na segunda pessoa do plural gramatical e verbo ter conjugado na terceira pessoa do plural), ou seja, a frase 2. Também para as mesmas maiorias (embora no ensino superior haja uma divisão praticamente simétrica entre as frases 1 e 3), a frase 1 foi considerada «a mais estranha», o que parece ser argumento para o entendimento de uma mudança contínua em direção a uma maior aceitação das formas de 3PP em posição de complemento (no caso, em dativo), em oposição ao que se constata ainda: a preferência pelas formas de segunda pessoa do plural gramatical em posição dativa (vos em detrimento de lhes), acusativa (vos em detrimento de os/as) e genitiva (vosso(s), vossa(s) em detrimento de seu(s), sua(s)).
E, então, o que é que isto significa? Significa que o tal "desaparecimento" da segunda pessoa do plural gramatical (diferente da segunda pessoa do plural semântica, que se concretiza na existência de um alocutário plural) não está a acontecer da mesma forma nem em todos os contextos (nomeadamente regionais; de idade/escolaridade e de formalidade) nem em todas as posições da frase. Além disso, a "mistura" de paradigmas em diferentes posições sintáticas parece, ao contrário das observações normativas de alguns autores,6 ser atualmente a realidade menos "estranha" para os falantes.
«E porque é que interessa refletir sobre esta variação (e potencial mudança) no que toca à alocução plural?», poderão estar a perguntar. Esta reflexão interessa por várias razões. Entre elas, destacamos:
1- porque estamos a refletir sobre a língua e sobre a sua evolução e isso, só por si, é fundamental, dada a importância que as línguas assumem na humanidade;
2- porque as mudanças linguísticas se relacionam com as mudanças sociais;7
3- porque a consciência da variação linguística e das suas potencialidades pragmáticas deve ser levada ao contexto escolar, dado o entendimento desse âmbito como meio nivelador, isto é, a complexidade da língua pode e deve ser exposta e explicada, de maneira que todos os estudantes sejam igualmente informados sobre possíveis consequências de diferentes usos.8
Por tudo isto, caríssimos professores dos ensinos primário, básico e secundário, se tiverdes oportunidade, ao regressardes de férias, estai atentos. Para lá dos «Professor, posso folha?»9, dos mais novos (produções que temos, efetivamente, ouvido, com bastante espanto), e dos “tipo”10 (não só desses mais pequenos, mas também dos não tão novos), sugerimos-vos que atenteis no uso espontâneo da segunda pessoa do plural gramatical, isto é, nos usos que não resultam das indicações para preenchimento das tabelas de conjugação verbal que aparecem nos manuais ou, por exemplo, da análise de textos não contemporâneos (sobre esses surgimentos, aproveitai as observações dos estudantes para abordardes este tema, que, felizmente, considerando alguns dos comentários que recebemos, parece até não lhes ser desinteressante: «Achei o questionário muito fixe. Obrigada por o ter mandado. Penso que é para comparar o vós, que aprendemos na escola e com o vocês, que é geralmente usamos [sic] quando falamos.» (comentário de um(a) estudante do 4.º ano), «Fiquei a saber qual era o tema do questionário pela primeira pergunta (é um comentário positivo), achei que este questionário, tal como o tema são bastante importantes, especialmente para a nossa geração mais nova.» (comentário de um(a) estudante do 12.º ano); «Penso que este questionário seja sobre o uso incorreto de algumas formas verbais no dia a dia. Por acaso já tinha pensado sobre isto e acho interessante ver a forma como a língua evolui.» (comentário de um(a) estudante do 12.º ano)).
Estai, assim, atentos caso o "dinossauro" surja espontaneamente na sala e reparai em que trajes se apresenta o bicho – particularmente, se em verbo (no indicativo? no imperativo?), se, tónico, em posição de sujeito ou complemento de preposição. Verificai se irrompe acompanhado pelas suas formas canónicas ou por amigos doutra estirpe. Indagai com cuidado, pois, como vimos, há provas de que é pragmaticamente camaleónico, apresentando, à vez ou concomitantemente, traços de anacronismo, proximidade e deferência.
PS: Se quiser deixar um comentário sobre o assunto ou especificamente sobre este texto, use, por favor, a ligação que apresentamos de seguida:
https://forms.gle/s9Y1QUidXDVBacdf7
Obrigada.
1 Sobre esta ideia de ser “a pessoa perdida”, cf., entre outros, Rodrigues Lapa, M. (1984 [1970]). Estilística da Língua Portuguesa (6.ª ed.). Acadêmica. e Monteiro, M. (2018). Por amor à língua. Objectiva. Rodrigues Lapa (1984 [1970], p. 154): «Um pronome perdido: vós. Praticamente, na linguagem de todos os dias, já não existe em português o pronome vós, salvo no falar de algumas regiões portuguesas do Norte e da Beira. Aqui ainda se emprega na 2.ª pessoa do plural. Exemplo: «Vós não tendes juízo, rapazes». Nas outras regiões do País, sobretudo para o Sul, este modo de dizer soa como arcaísmo e é geralmente substituído: «Vocês não têm juízo, rapazes». Logo, podemos afirmar que a 2.ª pessoa do plural está praticamente perdida em português e é substituída geralmente pela 3.ª do plural.” Monteiro (2018, pp. 121-134) fala na “pessoa desaparecida”.
2 Faria, M. (2025). Sobre vós em português europeu contemporâneo – um retrato baseado em produções e juízos da comunidade estudantil. Tese de doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
3 Ver, por exemplo, "O uso contemporâneo de vós" e "O pronome vós e formalidade", no Ciberdúvidas, e, por exemplo, uma reflexão sobre este tema num artigo de opinião no jornal Público: Patrick Rocha, "Manifesto pelo vós", 09/11(2018.
4 Essa vitalidade é referida por vários autores, entre os quais, por exemplo: Bacelar do Nascimento (2013, p. 2713) – Bacelar do Nascimento, M. F. (2013). Formas de Tratamento. In E. B. P. Raposo et al. Gramática do Português (pp. 2701-2730). Fundação C. Gulbenkian; Cunha & Cintra, 2017 [1984], p. 299) – Cunha, C., & Cintra, L. F. L. (2017 [1984]). Nova gramática do português contemporâneo. Lexikon; Duarte & Marques (2023, p. 287) – Duarte, I. M., & Marques, A. (2023). Vós and other pronominal forms of address (tu, você, vocês): speakers’ perceptions of Brazilian and European Portuguese. In N. Baumgarten & R. Vismans (Eds.), It´s different with you: contrastive perspectives on address research (pp. 272 293). John Benjamins Publishing Company; e Manole (2021, pp. 130-131) – Manole, V. (2021). O legado da perda: o pronome vós no português europeu atual. In C. Papahagi (Org.) Disparitions, effacements, oublis dans les langues romanes II (pp. 119-132). Presa Universitară Clujeană.
5 Realidade relatada também por vários autores: cf., por exemplo e entre outros, Faria (2009, p. 31) – Faria, R. (2009). O fenómeno da delicadeza linguística em português e em inglês – Tese de doutoramento. Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. e Duarte & Marques (2023, p. 284).
6 Cf., por exemplo, Monteiro (2018).
7 Cf. entre outros, por exemplo, Gouveia (2008) – Gouveia, C. (2008). As dimensões da mudança no uso das formas de tratamento em Português Europeu. In I. M. Duarte & F. Oliveira (Orgs.), O Fascínio da Linguagem (91-99). Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
8 Remetendo para Barros (1997, p. 98): «E o ensino de língua materna deve estar no centro de toda a acção tendente a anular a desigualdade» – ver Barros, C. (1997). História da Língua. Ensino da Língua. Revista da Faculdade de Letras «Línguas e Literaturas», XIV, 81-98.
9 Sobre isto, ver, por exemplo: Mãe, posso pão?, CNN, 16/02/2025.
10 Sobre isto, ver, por exemplo, Tipo, OK. Tipo, não. Tipo, "eu sei", Ciberdúvidas, 09/12/2019.