« (...) Uma das formas de se empreender um letramento linguístico e gramatical eficiente é fazer com que os usuários da língua consigam acessar diferentes textos (poemas, contos, notícias e outros, para citar alguns) escritos por diferentes autores, em diferentes épocas, com estilos e idiossincrasias próprios. (...)»
Parte 1
Atire a primeira pedra quem nunca passou pela experiência de ler um texto jurídico que, tamanha a sua complexidade, tamanho o seu rebuscamento – quase sempre desnecessário –, foi totalmente incompreensível, hermético em si mesmo. Ou ainda: quem nunca teve de ler um documento oficial ou uma informação num site oficial e ficou travado diante da forma obscura como o texto foi construído?
Os cenários descritos acima fazem parte, de fato, de uma realidade nossa: certos textos não foram feitos para serem acessíveis facilmente, não foram feitos para serem lidos e compreendidos. A sensação que fica é a de que há certos textos que foram feitos realmente para circularem apenas entre os próprios iluminados que o escreveram e não serem compreendidos, como se isso fosse uma qualidade do texto ou, pior ainda, de quem o escreveu. Assim, por exemplo, advogados se pavoneiam a cada “adredemente” utilizado, como se isso o colocasse um patamar acima dos simples mortais que, não sabendo o que significa adrede, seriam inferiores a tão grande sabedoria.
Aqui, pouco importa que ninguém use adrede hoje em dia, que a palavra já esteja (praticamente) em efetivo desuso na língua e que suas ocorrências fiquem restritas a algum tempo histórico anterior. O que importa é mostrar para o mundo inteiro que você sabe o que adrede significa – e que ainda o usa em um texto, veja só! Eu poderia continuar dando incontáveis exemplos (caricatos, eu sei...) desse tipo que ocorrem na escrita jurídica ou em documentos oficiais – que, muitas das vezes, falam demais sem que no fundo digam nada, mas isso é assunto para outro momento...
Pensando nesses dois casos específicos, duas iniciativas públicas foram implementadas: no caso do mundo jurídico, houve a criação do Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, que, segundo informações do site do Conselho Nacional de Justiça, «consiste na adoção de ações, iniciativas e projetos a serem desenvolvidos em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de adotar linguagem simples, direta e compreensível a todos os cidadãos na produção das decisões judiciais e na comunicação geral com a sociedade»; no segundo caso, foi aprovada a Lei 6256/19, que dispõe sobre o uso de linguagem simples na comunicação de órgãos públicos.
As iniciativas são, sem dúvidas, meritórias. Quem não quer ler um texto mais claro, mais acessível, mais direto e menos técnico? Quem não quer conseguir entender o que lê, sem precisar ficar refém de interpretações de outras pessoas ou sem ter acesso a determinadas informações? Por muitos motivos diferentes, incluindo acesso à cidadania, inclusão e participação política e social, as iniciativas são válidas e louváveis.
Iniciativas assim têm o potencial de impactar positivamente a vivência cidadã das pessoas, o seu acesso aos serviços públicos e jurídicos e a sua sensação de pertença como um todo na vida social. É oferecer a cada um a chance de, talvez pela primeira vez, ter a sensação de compreender algo da própria vida ou que impacta na própria vida. Num país como o nosso, com tão grandes desigualdades educacionais, com níveis de aproveitamento escolar tão baixos e problemas tamanhos, certamente essas propostas vêm a calhar, são úteis e justas. Ponto positivo.
Ainda assim, fica uma pergunta: haveria algum problema nisso? Deixemos essa conversa para a parte 2 deste texto.
Parte 2
Em meu último texto, trouxe para a discussão dois projetos públicos com impacto direto no uso de nosso idioma: o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples e o Projeto de Lei 6256/19, que aprova o uso de linguagem simples na comunicação de órgãos públicos. Naquela ocasião, mostrei brevemente como os projetos eram importantes em um primeiro momento e como poderiam impactar positivamente na sociedade. No final, ficou uma pergunta em tom de provocação: quais seriam, então, seus problemas?
Dentre os possíveis pontos problemáticos nesse tipo de proposta, quero destacar apenas três neste texto: (i) a consequente diminuição da capacidade linguístico-expressiva das pessoas, (ii) o alcance da simplificação da linguagem e (iii) um possível resultado final disso na sociedade.
Uma das formas de se empreender um letramento linguístico e gramatical eficiente é fazer com que os usuários da língua consigam acessar diferentes textos (poemas, contos, notícias e outros, para citar alguns) escritos por diferentes autores, em diferentes épocas, com estilos e idiossincrasias próprios. Faz parte da própria capacidade de linguagem dos falantes esse desenvolvimento particular que vai possibilitar a compreensão cada vez mais complexa de textos.
Por sua própria natureza, há textos que DEVEM SER mais complexos, que PRECISAM de maior capacidade interpretativa de seus leitores e que usam a expressividade da língua em diferentes níveis e camadas. É fácil imaginar isso quando pensamos em um texto literário como o de Machado de Assis, mas as mesmas necessidades podem ser requeridas, por exemplo, em uma decisão judicial. Por que não? Uma argumentação jurídica pode precisar – e frequentemente precisa – usar recursos expressivos da língua, jargão técnico, termos obscuros ao público em geral e outros elementos que, num primeiro momento, poderiam ser condenáveis pelo Pacto firmado. A longo prazo, como essas medidas poderiam impactar no mundo jurídico? Alguém se perguntou sobre isso? Fez algum estudo prévio? Parece que não...
Há séculos de estudo filosófico no campo da lógica, da retórica e da argumentação. Esses estudos convergem em mostrar que a complexidade de organização do pensamento, a seleção vocabular e as construções sintáticas fazem parte da própria ação de linguagem necessária. Reduzi-la a uma dimensão forçosamente simples é, em última instância, limitar a capacidade expressiva da língua – e não precisa ser muito esperto para antever que, a longo prazo, isso incidiria na própria diminuição da capacidade linguística dos próprios falantes. Alguém pensou nisso? Parece que não...
Algum leitor poderá dizer que exagero e que o Pacto ou a Lei não teriam esse objetivo ou alcance. Como diria Michael Kyle, no seriado Eu, a Patroa e as Crianças, «a questão são os princípios». O germe da ideia está lá. Pois bem, então eu ainda pergunto: até onde deveria ir o uso desse tipo de linguagem simples? Que alcance deveria ter? Em que tipo de situação, contexto ou texto?
Recentemente, eu estava em um contexto em que soube do recebimento da indicação de que as provas de um curso de Letras deveriam ter «enunciado simples, em ordem direta, com até 25 palavras e sem utilização de figuras de linguagem como metáforas». Isso seria uma forma de adequação às «Diretrizes para uma linguagem simples», ação que pudesse ser inclusiva a todos os alunos e que permitiria (supostamente) maior aproveitamento do curso.
Será mesmo que ninguém imaginou, nem por um mísero segundo, que faz parte da própria condição essencial de um curso de Letras – de Letras!! – formar professores com pleno domínio da linguagem, capazes de ler, compreender, analisar, criar, reproduzir e adaptar não apenas enunciados complexos, mas também textos complexos, comandos complexos e linguagem complexa? Que tudo o que um professor de Letras menos precisa na vida é de uma linguagem simples no seu dia a dia? Que se ele não é capaz de entender um enunciado com mais de 25 palavras então certamente ele não seria capaz de entender um texto teórico ou literário? Parece que não...
Como pode ser visto, o pacto e a lei transbordaram de seu habitat natural e influenciaram outros contextos que, pelo menos inicialmente, não eram intencionais. A ideia chegou na formação universitária, e eu a cito apenas como ilustração, apontando uma de suas influências, embora certamente eu pudesse falar de outras. Isso por si só já deveria nos fazer refletir sobre quais poderiam ser os alcances dessas iniciativas, além de suas implicações diretas e indiretas.
Por fim, um último ponto a ser considerado: quais poderiam ser os impactos na sociedade a longo prazo? Se por um lado essas iniciativas podem impactar positivamente, como vimos no primeiro texto, por outro seu potencial de destruição e prejuízo são igualmente existentes e consideráveis. Imaginemos um cenário não tão utópico de 100 anos para a frente em que, pouco a pouco, alastrado como fogo no mato seco, a linguagem simples ganhasse tanta força que fosse adotada em todos os contextos da vida social. Alguém consegue dimensionar o tamanho do problema em que todos nós estaríamos?
É por isso que qualquer ação de política linguística deve ser tomada tendo como parâmetro não apenas a solução imediata, o caminho mais fácil, a ideia que a torcida pede ou o lobby que é feito. É preciso cautela, estudos prévios, dimensionamento das consequências, diretrizes bem definidas de ação, delimitação do objeto e muito mais. Sem isso, corremos o perigo de tomar gato por lebre e de fazer algo que, mirando num bem desejado, acerta num mal não desejado.
Trabalho da autoria do linguista brasileiro Jefferson Evaristo publicado em duas partes no mural de Facebook Língua e Tradição nos dias 20 de julho e 17 de agosto de 2024.