Como é que é possível desenvolver e divulgar um estudo científico sem recorrer a uma metalinguagem rigorosa, unívoca e objectiva? Não é. Eis o tema desta artigo do professor universitário português Manuel Gonçalves da Silva, publicado no Diário Económico de 2 de Outubro de 2008, e que a seguir reproduzimos com a devida vénia.
Nas ciências e nas engenharias, a construção de sínteses objectivas é essencial e exige capacidade de construção correcta de ideias e a sua comunicação rigorosa. Palavras e gramática são essenciais à concepção e à transmissão do pensamento.
A escrita atabalhoada, sem respeitar o significado das palavras, impede o desenvolvimento e a divulgação de conhecimentos científicos. Os seus autores, em geral, não compreendem, nem correlacionam textos e vivem na periferia do conhecimento científico.
Pretender que os alunos de ciências e de engenharia escrevam de modo claro e conciso, sem ambiguidades, com rigor, não é nacionalismo, nem excentricidade obsoleta. É um imperativo de qualidade e de progresso científico.
Esse objectivo encontra obstáculo na falta de qualidade da linguagem usada por muitos agentes do ensino [português] e na negligência frequente de órgãos de ministérios ligados ao processo educativo. Entra em conflito com o já descrito “Ensino da Ignorância”.
Comprova-se, citando casos avulsos, mas representativos, de escrita desleixada ou tonta no ensino superior.
O ‘making of’ de uma ‘call’ e o ‘elevated pitch’
O Ministério do Ensino Superior, por exemplo, informa:
«... Ao contrário do previsto, a ‘call’ não irá ser publicada neste mês de Julho», enquanto uma universidade pública lisboeta diz que os alunos «… vão desenvolver uma ideia inovadora para apresentação num ‘elevatorpitch’ público», e, na promoção do 7.º Programa–Quadro éramos informados de que «...a ‘call’ será expectavelmente publicada em 3 de Setembro». Uma biblioteca pública divulga a «... projecção do ‘making of’ de uma exposição».
Papel de carta em vibração?
Mas não só disparatados anglicismos poluem a comunicação escrita. O festival de asneiras adultera termos técnicos. Mesmo numa faculdade de ciências, designa-se por “estacionário” o conjunto de artigos de papelaria destinados a correspondência. Trata-se da tradução ignorante de ‘stationery’ confundida com ‘stationary’, termo este usado em engenharia e que se aplica a fenómenos com comportamento estacionário.
Mas a impetuosidade de escrever teses em inglês, para júris, escolas e alunos nacionais tem conduzido a textos que substituem o valor técnico, às vezes discutível, por involuntário humorismo.
Por exemplo, chamando ‘rehearsal’ a ensaio de materiais em tese científica. E mais, e pior.
E os docentes universitários?
"Pejurativo", "concelho" por conselho, "intensão", "pretenção" são culpas... do corrector ortográfico do computador. Fácil é ouvir “interviu”, “houveram provas" ou "razões ou faltas” e “hádem” vir melhores tempos. Mas é na transmissão de ideias que piora o problema. Cite-se artigo recente de conhecido catedrático, em jornal diário: «... é necessário que se refunda o pensamento crítico-político português. A esta refundação...» O docente confunde «fundar» com «fundir», ou não sabe usar o conjuntivo, ou ambos. Chama, ainda, «bons samaritanos» a quem defende «... as suas damas» numa revisão bíblica de notável inovação. Sugere, até, a «... imolação com base em princípios científicos» para acabar como… «princípio do nivelamento por baixo»! Seria apelo ao eugenismo, se não soubéssemos que escreve sem dominar o significado do que diz. As universidades recrutam docentes sem provas pedagógicas, e as togas deixam nua muita ignorância que degrada a Língua e impõe um medíocre ensino às ciências e à engenharia.
A influência perturbadora da Internet é inegável, mas controlável. Alguns erros ortográficos são corrigíveis. Fugas deliberadas às regras gramaticais podem, até, ser eloquentes, como dizia um bloguista, defendendo a força da declaração «Meu bem, você sabe que eu te amo!». Mas os docentes têm [de] escrever com rigor para que transmitam rigor à aprendizagem dos alunos. A Agência de Acreditação tem [de] considerar a qualidade da comunicação escrita entre os parâmetros a avaliar no ensino. Os ministérios, esses, têm [de] seguir uma política de exigência e qualidade linguística que não se tem verificado.
in Diário Económico, 2 de Outubro de 2008