«(...) A questão das palavras importa, porque as palavras são o reflexo de mentalidades, de estruturas. Em França, aos poucos também se vai abandonando o termo pedofilia para passar a falar de pedocriminalidade e de pedocriminosos. Porque as violências sexuais contra crianças, como contra as mulheres não são nem amor, nem abusos, são agressões, são violência, são crimes. (...)»
Anos 80, temos teste na escola primária «das freiras». Engano-me e escrevo diretamente na «folha boa», em vez de escrever na «folha de rascunho». Acho graça ao engano. Viro-me para o meu coleguinha do lado e, divertida, mostro-lhe a patetice. Quando viro a cabeça para voltar à escrita, levo um valente estalo da professora, da irmã.
Tenho uma vontade atroz de chorar, pela surpresa, pela violência. Retenho-me. Como me havia retido durante esses anos de beber água, apesar da sede, ou de ir à casa de banho. O sacrifício. Pensar no exemplo das santas que dormiam no chão e passavam dias sem comer ou beber. O sacrifício é sinónimo de bondade, o caminho assegurado para o céu. Faço parte das crianças sortudas, boa soldadinha, sou menos vezes punida. Menos sorte têm tantas outras, como o meu amiguinho que ainda tem dificuldades para reter as «necessidades fisiológicas». Não somente, é muitas vezes obrigado a ficar ali sujo na cadeira, como ainda é punido com estalos, reguadas, com o apagador ou obrigado a ficar de pé contra a parede para todos verem «o porco». Que triste e ordinário espetáculo este, vivido no meio de tantas palavras e imagens de amor: «Deixai vir a mim as criancinhas», «Deus é amor».
O nosso corpo pertence a estas pessoas adultas, têm sobre ele direitos, com, por vezes, a anuência dos próprios encarregados de educação: «Se se portar mal, pode bater-lhe». A questão do corpo disponível, à mercê, como dádiva é omnipresente: «Dar o corpo ao Senhor», «tomai, comei: isto é o meu corpo». Para as crianças que somos, as metáforas não são de fácil compreensão.
Hoje, é interessante ver a forma como se utiliza, sem debate, a expressão eufemística de «abusos sexuais» na Igreja, tal como se utiliza para as violências sexuais contra mulheres. Como explica a jurista Miriam Ben Jattou em Quando o Abuso Sexual é um Abuso de Linguagem, no Direito Romano a propriedade de um objeto dividia-se em usus, abusus e fructus. Para resumir, o usus era o direito ao uso exclusivo do objeto, o fructus os direitos sobre os seus “frutos” e o abusus «o direito de dispor juridicamente e materialmente» e, por isso, ter o direito de fazer o que com ele se quisesse como «vendê-lo, modificá-lo e mesmo destruí-lo». Abusar é utilizar mal, utilizar em excesso, sem colocar em causa a questão da propriedade ou de uma «utilização normal». Ora, em momento algum a violência física, sexual, independentemente do grau de gravidade, contra crianças é «normal», e estas não são propriedade da Igreja. Não se pode abusar de um direito que não se tem.
Para quem vive num ambiente religioso, as freiras e sobretudo os padres são a expressão máxima da virtude, até em certa medida para as crianças ateias como eu me tornei na altura. Ainda mais do que pais, professores ou médicos, são as criaturas que mais se aproximam do «nosso Criador», os mensageiros privilegiados da «Palavra do Senhor», quase divinos. Se os crimes sexuais existem em tantos outros domínios, é necessário compreender a especificidade desta violência no seio da Igreja. A forma como o terreno é propício para a autoridade, a confiança, a culpabilidade, a vergonha é, aliás, patente no testemunho de sobreviventes: «Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo, porque era pecador e ia para o Inferno». «Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja». «Tivera uma educação católica, [os] padres eram pessoas em quem se podia confiar». «Sentia-me culpada».
Esta ideia de propriedade, com a qual se faz o que se quer, aparece também nas entrelinhas quando se desviam as atenções da violência sexual dos padres para a questão do celibato. Fazendo aparecer a figura do homem por detrás da batina, como tendo, tal como os outros homens, desejos irreprimíveis que só podem ser satisfeitos com a aquisição de propriedade de um corpo que ali está para o servir. O que nos levaria aqui também para o tema dos deveres e violações conjugais. Ou ainda para o tabu da violência sexual contra as freiras.
A questão das palavras importa, porque as palavras são o reflexo de mentalidades, de estruturas. Em França, aos poucos também se vai abandonando o termo pedofilia para passar a falar de pedocriminalidade e de pedocriminosos. Porque as violências sexuais contra crianças, como contra as mulheres não são nem amor, nem abusos, são agressões, são violência, são crimes.
Cf. A pedofilia, noutro tempo + Manual de sobrevivência para vítimas de assédio
Artigo da professora Luísa Semedo, transcrito, com a devida vénia, do jornal português Público do dia 23 de março de 2023.