«(...) Ainda não se sabe se estamos perante uma nova pandemia. Mas é sabido que não se pode cair no mesmo erro. A revelação de uma doença não deve voltar a ser razão de estigma e discriminação. A linguagem tem um papel muito importante aqui. (...)»
Foi com alguma surpresa que se ouviu falar da possibilidade «de mais uma epidemia entre os homossexuais». Foi o presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia, Vítor Duque, e a propósito da varíola dos macacos. A escolha das palavras foi infeliz, admite-se que pouco ponderada, mas as palavras foram ditas, e publicadas, e por isso merecem reflexão pública. Não caíram bem.
O «mais uma» remete para o VIH (vírus da imunodeficiência humana), precisamente a pandemia com a qual se deveria ter aprendido a não usar esta linguagem; pode falar-se em comportamentos de risco mas não em grupos de risco. Trata-se de puro bom senso. É intuitivo. Mesmo que não fosse, o passado deveria ter ensinado alguma coisa.
No início do VIH utilizou-se linguagem que tinha implícita a culpa e o julgamento moral da homossexualidade. Antes de se usar a designação aids (em Portugal sida), chegou a usar-se «pandemia gay», «cancro gay» ou WOGS, acrónimo da língua inglesa que significa «Síndrome da Ira de Deus».
Susan Sontag no seu livro A Doença como Metáfora – A Sida e as Suas Metáforas dizia que esta doença se distinguia do cancro, que era assumido como uma «doença provocada pelos hábitos do indivíduo». Enquanto o VIH é tido como «uma doença provocada pelo indivíduo enquanto tal e enquanto membro de algum grupo de risco – essa categoria burocrática e aparentemente neutra».
O veneno do costume: “o outro”
Com a varíola dos macacos estão novamente reunidos os ingredientes: uma doença cujos sintomas causam repulsa, a possibilidade de apontar um grupo como sendo os que estão em risco e a ideia de perigo de uma invasão que atinge o coletivo.
Se é difícil evitar o primeiro, temos certamente a obrigação de acautelar os outros dois. Está sempre aqui em causa o veneno do costume: o outro, aquele que é diferente. O mal deixa de ser a doença e passa a ser o doente. A própria homossexualidade ainda reúne, para muitos, os referidos ingredientes. Tem de ser dito. Existe quem sinta repulsa pelo ato sexual entre pessoas do mesmo sexo, mas sobretudo entre homens.
Mais, persiste uma ideia de que a homossexualidade tem a ver com a colonização por costumes e práticas vindos de fora. Que naturalmente as pessoas não seriam homossexuais.
No limite, o que muitos preferem fazer é tratar a homossexualidade como um não assunto. No fundo abstêm-se de comentar, como se esse silêncio fosse positivo. Não é. Elevar à categoria de regra social a hipocrisia não pode ser visto como uma coisa boa. A homossexualidade, como orientação sexual ou como identidade, continua a ser um tema que merece tratamento. Este foi só mais um exemplo.
Ainda não se sabe se estamos perante uma nova pandemia. Mas é sabido que não se pode cair no mesmo erro. A revelação de uma doença não deve voltar a ser razão de estigma e discriminação. A linguagem tem um papel muito importante aqui. É preciso conciliar a linguagem médica e científica com o que já se aprendeu com o VIH de forma a não criar representações como aquela que se transcreveu inicialmente.
Os portugueses são bons em situações de crise e em atos heróicos, mas não tão bons no dia a seguir. Escreveu Álvaro de Campos:
«Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho.»
A luta contra a discriminação dos homossexuais teve grandes marcos em Portugal e eles são também legislativos; como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a admissibilidade de adopção, em qualquer das suas modalidades, por casais do mesmo sexo.
Falta então que, no quotidiano, a linguagem e os comportamentos discriminatórios sejam abolidos. É mesmo preciso manter a atenção nestes problemas e denunciar quando acontecem. Não se trata de policiar, mas de exigir um tratamento respeituoso. Também aqui a Índia já foi descoberta, mas continuamos todos com este emprego.
Cf. A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?
Crónica da autora, transcrita, com a devida vénia, jornal Público, do dia 20 de maio de 2022, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.