Fernão de Oliveira [1507-1581], autor da primeira Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), alertou: «Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens»; e João de Barros [1496-1570], quatro anos depois, afirmou que o português «não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura». É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: «Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon...»
Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no Livro do Desassossego. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I [1566-1625] ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores.
A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros.
A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y.
E [Teixeira de] Pascoaes [1877-1952] não se resignou: «Na palavra lagryma, (...) a forma do y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.» Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico...
Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: «Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram.»
Crónica de Guilherme d'Oliveira Martins publicada no Diário de Notícias em 20 de abril de 2021.