A palavra consciência traz no fundo da sua significação o sentido de “conhecimento comum a muitas pessoas”. Consciência é uma “ciência, um saber com os outros”, que se partilha com muitos outros.
Mas são tantas as vezes em que a realidade trai a etimologia!
Foi assim no século XVII com o Padre António Vieira, que nos mostrou que o saber pode pertencer, afinal, apenas a um homem. Confrontada com a violência sobre índios, capturados, separados, escravizados, aprisionados e animalizados, a consciência de um só homem falou mais alto e ele denunciou, acusou, agiu. Não foi ali que terminou a escravatura porque a história nunca se fez acabada. Não foi ali que se defenderam os negros porque a consciência de ontem não é a consciência de hoje. Mas foi ali que a consciência de um homem só abraçou os mais fracos e, quando já nada parecia valer a pena, gritou:
«Saiba o mundo que ainda há verdade, que ainda há temor de Deus, que ainda há alma, que ainda há consciência e que não é o interesse tão absoluto e tão universal senhor de tudo, como se cuida.» (Sermão da Primeira Dominga do Advento)
Em 1940, Aristides de Sousa Mendes, com o seu ato humanitário, também restringiu o significado da palavra consciência a um homem só, a uma sabedoria sem os outros, porque ninguém quis partilhar com ele um saber que deveria ser comum aos humanos: o saber de que todas as vidas merecem ser salvas!
Cada uma das trinta mil vidas resgatadas por Aristides carimbou a solidão da palavra consciência e mostrou-nos que ser consciente implica, por vezes, desobedecer. Com o ferro do seu prefixo des-, desobedecer recusa-se a acatar ordens.
E, para alguns homens, a consciência é mais forte do que a obediência. Para alguns homens, algumas vezes, a consciência exige desobediência.
Obedientes foram todos os que rejeitaram Aristides e dele se afastaram. Mas esses nunca chegaram a saber o que é a consciência. Esses preferiram a inconsciência, que não é sinónimo de ignorância. É sinónimo de não querer saber porque não dá jeito.
E o ato solidário de um homem só, que refez o significado da palavra consciência, tal como o tinha já feito o Padre António Vieira, estendeu-se no tempo. E 80 anos depois, o tempo teve tempo de corrigir a significação da palavra. 80 anos depois, muitas pessoas partilham com Aristides a consciência de que cada vida merece ser salva.
E é porque queremos manter essa certeza que se criam projetos como o “Dever de Memória”, inscrito na missão da UNESCO, que expõe agora trabalhos artísticos em homenagem ao ato de Aristides de Sousa Mende ou a iniciativa da Assembleia da República, que votou a favor de um monumento a recordá-lo no Panteão Nacional.
O importante é que nada seja feito por «desencargo de consciência», que é como quem diz porque «está na moda» ou que, na próxima viragem do tempo, ninguém esteja disponível para voltar a «vender a sua consciência».
O fundamental é que todos se consciencializem da diferença entre o bem e o mal e que ninguém tenha dúvidas no momento de optar. Mas… isso já era confundir consciência com utopia…
(Áudio disponível aqui)
Texto lido pela autora no programa Páginas de Português, emitido na Antena 2, no dia 21de junho de 2020.