Recentemente, um leitor colou num prolífico colunista da praça o sugestivo epíteto de “tudologista”. Para não plagiar o neologismo, vou dar-me licença para, com a devida vénia, inventar o neologismo “omniólogo” como adjetivo/substantivo apropriado à pessoa do Dr. Bagão Félix, autor do artigo do “Público” de 5 do corrente, intitulado “A torre de Babel da União Europeia, sem o Reino Unido. E agora?”, transcrito aqui, no Ciberdúvidas de 11 do corrente.
Acontece que o Dr. Bagão Félix, pelo menos desta vez, meteu foice em seara alheia. E, ao fazê-lo, ceifou onde não devia, ceifou mal e poupou à foice o que devia ser ceifado.
Como epígrafe do seu artigo, repetida no texto do mesmo como revelação evangélica, o ilustre colunista transcreveu: « (…) Tudo vai passar pela expressão generalizada do bilinguismo: a língua materna e um segundo idioma. E, para este, o Inglês tomou definitivamente a dianteira, enquanto a língua mais universal e “neutra”, na falta de um qualquer esperanto que fracassou (…)».
Azar do colunista, logo nesta introdução perentória.
Em círculos de especialistas (interlinguistas, glossopolitólogos, glossossociólogos, quejandos e afins) vem-se discutindo há décadas, entre o mais de pertinente, qual será a ordem linguística do futuro, a que critérios ou critérios obedecerá e a que critério devia obedecer segundo os interesses dignos de tutela para uma escolha de critério.
O bilinguismo de que o colunista fala é apenas uma das plúrimas saídas para o problema, valendo dentro da União Europeia mais como placebo do que como remédio. O tipo de bilinguismo propugnado desagua no Inglês erigido em língua-par da língua parental como fatalidade histórica. «Definitivamente», profetizou o colunista, por adesão à epígrafe. Mas definitivamente porquê? O Inglês ditou, porventura, o «fim da História» no que toca, veicularmente, à ordem linguística mundial e europeia? O Francês não foi já, durante séculos, a língua “definitiva” do mundo “civilizado”? E essa “definitividade” não foi também assumida pelo Latim durante quase um milénio, antes do Francês? A hegemonia do Inglês não começou somente a seguir ao fim da II Guerra Mundial? Numa diacronia de hegemonia linguística de dois milénios, a “hegemonia” do Inglês não chega afinal a ter mais de três quartos de século.
Porquê «feitos carneiros num mundo anglofonizado»?
Se o Inglês já foi ultrapassado, há mais de uma década, pelo Espanhol, em termos de percentagem demográfica de falantes a nível planetário, e pode até, a médio prazo, vir a ser ultrapassado pelo Português, porque havemos nós, feitos carneiros, de deixar o mundo anglofonizar-se, para já veicularmente e, depois, identitariamente?
O Inglês merece, evidentemente, todo o respeito como língua étnica ou nacional, mas não encerra qualquer legitimidade linguística, científica ou filosófica para ocupar o lugar de língua franca universal. Aponta-se ao Inglês a vantagem de ser uma língua abundante de monossílabos e com grande flexibilidade semântico-contextual, mas, entre outros inconvenientes, tem o de ser uma das línguas mais irregulares do mundo a nível fonético, morfossintático e semântico. A sua irregularidade não impediu que nela trabalhasse e a trabalhasse genialmente um Shakespeare; pelo contrário, as suas irregularidades facilitaram o trabalho ao génio. Simplesmente, não é o tesouro literário duma língua que a legitima como língua franca europeia ou universal. E, se esse devesse ser o critério certo, outras línguas, não poucas, rivalizariam com o Inglês como ideais para número um da veicularidade universal.
«Neutra»? Mas em que aspeto? Nenhuma língua étnica pode ser neutra ou neutral. Não pode ser neutra, porque carrega em si uma cultura diferente, valores e referências diferentes, memórias diferentes, hábitos diferentes, desideratos diferentes, maneiras diferentes de olhar e entender o mundo. E não pode ser neutral, porque carrega em si caraterísticas fenotípicas e genotípicas diferentes e, sobretudo, interesses materiais e imateriais diferentes, inerentes à vocação humana de domínio sobre o próximo e o longínquo.
«Um qualquer Esperanto que fracassou»??!
«Na falta de um esperanto qualquer que fracassou (…)». Mas o que sabe o colunista sobre Interlinguística e sobre planeamento linguístico, para aderir tão adesivadamente a este segmento frásico da epígrafe? O que sabe sobre o Esperanto e as cerca de mil línguas planeadas, interétnicas ou não, que viram a luz do dia, umas em forma de projeto não trazido ao grande público e outras em forma de línguas acabadas que fizeram escola por países ou por todos os continentes? Que sabe acerca da relação de conteúdo entre o ensaio de Descartes sobre uma língua planeada universal e o Esperanto? Que sabe acerca do estudo de Fernando Pessoa sobre línguas planeadas e línguas “imperiais”? Que sabe sobre o apoio pecuniário, mediático e moral dado até hoje ao Esperanto pela China e pela Rússia (pós-estaliniana)? Que sabe sobre as Universidades espalhadas pelo mundo onde é ministrado o ensino do Esperanto, seja como cadeira opcional, seja como objeto de licenciatura, mestrado e doutoramento? Que sabe sobre a posição de vultos da Interlinguística como Noam Chomsky e Umberto Eco quanto ao papel do Esperanto? Sabe quantos prémios Nobel e celebridades do mundo cultural falam Esperanto, frequentam os seus Congressos ou os saúdam na inauguração? Que sabe da antiguidade do estatuto de língua litúrgica reconhecido ao Esperanto pelo Vaticano? Que sabe acerca das missas que há décadas são celebradas em Esperanto (inclusive já cocelebradas por três bispos católicos)? Que sabe sobre quantas vezes, quando e em que conferências dos seus Estados-membros, foram deliberadas no seio da UNESCO recomendações dirigidas a esses Estados-membros para ministrarem o ensino do Esperanto com impulso e suporte oficial? Que sabe acerca da percentagem de eurodeputados que subscreveram documentos individuais a propor o Esperanto como língua veicular oficial ou cooficial do Parlamento Europeu ou, pelo menos, a apoiar a sua aprendizagem como meio de a tornar veicular no seio da União Europeia? Que sabe acerca das circunstâncias em que uma coleção de exemplares dum livro intitulado “Timor – o maior campo de extermínio do mundo”, escrito em Português, Inglês e Esperanto (prefaciado pelo Nobel Ramos-Horta e lançado no Palácio dos Congressos “Le Corum”, em Montpellier, em 6 de Agosto de 1998), foi levada e distribuída por um sócio da Associação Portuguesa de Esperanto (instituição com estatuto oficial de utilidade pública) aos europarlamentares em Bruxelas (um exemplar oferecido individualmente a cada parlamentar), em vésperas de ser votada (e aprovada) no Parlamento Europeu uma proposta a favor da autodeterminação de Timor-Leste? Que sabe do encaminhamento destinado a uma petição sobre o ensino do Esperanto em Portugal levada à Assembleia da República pelo Partido Socialista e ovacionada por todos os partidos do hemiciclo? Que sabe acerca do número de Congressos Universais de Esperanto (um por ano) realizados até hoje em 5 continentes? Que sabe acerca do número de congressistas que participam em média desses congressos? Que sabe da realização de reuniões de trabalho entre chefes de Estado em que a língua veicular utilizada foi o Esperanto? Que sabe sobre o grau de parecença, mormente lexical, entre o Esperanto e o Português?
Pois bem, Dr. Bagão Félix, se souber responder pelo menos a duas das perguntas postas acima, talvez alguém com conhecimento de causa possa reconhecer-lhe legitimidade para falar sobre «um qualquer Esperanto que fracassou». E talvez chegue à conclusão de que, se algo ou alguém fracassou não foi o Esperanto mas sim as forças políticas rendidas ao Inglês e aos benefícios imediatos que este pode trazer (às quais se aliaram os néscios, os abúlicos e os que sabem não ganhar votos com propostas de adoção duma língua neutra), ainda que, em perspetiva intergeracional ou mesmo intrageracional, tal rendição se dê à custa da erosão da identidade das línguas nacionais e minoritárias, precisamente aquelas que o Esperanto, pela sua própria natureza de língua veicular auxiliar, faz questão de preservar.
O Inglês só será «meio privilegiado de comunicação», enquanto “omniólogos” como o Dr. Bagão Félix (com a classe política à cabeça) se coligarem a favor da anglofonização do mundo.
O poliedro da feliz metáfora do Papa Francisco não parece que se aplique com sucesso ao problema da ordem linguística europeia e mundial. Esse poliedro, no caso, é o multilinguismo, consagrado há muito no Regulamento Linguístico da União Europeia. Simplesmente, o multilinguismo não é a solução para o problema – é, sim, o próprio problema em roupagem evocativa da historieta “O Rei vai nu”. O multilinguismo é uma declaração oficial, que na prática não tem aplicação. Serve de lenitivo ao dorido sentimento glosso-identitário dos países-membros sujeitos a conformarem-se com a hegemonia de facto das línguas dos maiores na União Europeia.
O Dr. Bagão Félix não só não faz o sopeso inteiro das alternativas de solução para o problema linguístico da Europa, como também não domina a natureza dos idiomas que constituem o mapa linguístico da Europa. Só para dar um exemplo, chama «língua cigana» ao que os linguistas veem como uma díade de complexos dialetais – o Români e o Sínti. Ironicamente, vêm-se fazendo estudos de planeamento linguístico no sentido de se chegar a uma língua cigana única, algo à semelhança do que foi feito na Indonésia (com o Bahasa), com o Norueguês (antes dividido em dialeto do norte e dialeto do sul), do Romanche (complexo dialetal suíço) e do próprio Hebraico moderno. As diferenças muito acentuadas entre os dois complexos dialetais ciganos (em que não entram os três calós ibéricos) não permitiram, até hoje, obter, por via de planeamento linguístico, a unificação desses dois complexos dialetais. O Esperanto é, na sua génese e desenvolvimento, uma espécie de Bahasa Indonesia, mas, diversamente deste, que passou por um processo de planeamento interglóssico intranacional, o Esperanto foi criado através dum processo de planeamento interglóssico internacional.
O Esperanto é uma língua de gramática otimizada que pode ser aprendida em 10 ou 20 vezes menos tempo do que as outras línguas, dependendo esse tempo da língua parental ou língua de partida.
A língua portuguesa é uma das que, em todo o mundo, mais parecenças lexicais, fonéticas e morfossintáticas têm com o Esperanto.
Logo após a recente aprovação do Brexit em referendo na Grã-Bretanha, começou, com a perspectiva de a União Europeia deixar de ter como língua dominante o Inglês, uma campanha a nível mundial para angariação de assinaturas a favor da introdução do Esperanto, língua internacional neutra, como língua veicular oficial ou cooficial da União Europeia.
A subscrição da petição de candidatura do Esperanto visada nessa campanha e a leitura do respetivo apelo multilingue faz-se através do ligação sequinte:
https://www.avaaz.org/en/petition/Esperanto_langue_officielle_de_lUE/
in "Público" do dia 18 de setembro de 2016 em resposta ao artigo "A torre de Babel da União Europeia, sem o Reino Unido. E agora?”, assinado por António Bagão Félix, no mesmo jornal de 5/07. Subtítulos da responsabilidade do Ciberdúvidas. Mantiveram-se as maiúsculas iniciais nas denominações das línguas em referência, conforme figuram no original, muito embora, geralmente, se prefira a minúscula inicial – cf. resposta "Ainda a maiúscula inicial nas designações das línguas" nos Textos Relacionados, ao lado.