A definição dos dicionários da língua é vaga, mas serve. De facto, provinda do latim "licet" (é permitido), a licença autoriza-nos uma série de formas contrárias à ortografia, à sintaxe (que sentimos mais face ao anacoluto), à fonética e, mesmo, ao léxico corrente (desejamos um feliz himeneu a quem se casa). Visa-se resolver um problema de construção, versificatória ou rítmica, ou criar uma atmosfera linguística coerente. Nem sempre, todavia, sentimos as diferenças, caso de inda /ainda, o que significa que, sem alteração das normas gramaticais, podemos ter licença, quando entram em jogo outros valores. Isso percebe-se bem no que Amorim de Carvalho (Tratado de Versificação Portuguesa, Lisboa, 1981, p. 62-64) chama as licenças poéticas de distensão: temos muitas próteses (mostra/amostra), mas a epêntese (Marte/Mavorte) significa mais do que uma sílaba medial, se a nobreza da linguagem isso pede (o que já não funciona se Mavorte for visto como um arcaísmo). Ganhamos outra sílaba na epítese (mártir/mártire) e na diérese, se dividimos o ditongo em duas (tra-ição). Bocage tem uma musa «impia» (em vez de «ímpia»), o que é uma diástole, porque o acento se deslocou para a seguinte. Num verso de Bernardim, com sete sílabas – «Não é este o menor» –, temos de desfazer a elisão e, em vez de «est’o», ler «este o»: trata-se de diálise. As licenças poéticas de compressão serão mais conhecidas, e da fala comum: aférese (até/té, está/‘stá), síncope (pérola/perla, flores/flor’s), apócope (vale/val’), ectlipse (com a gente/co’a gente: desnasaliza com), sinérese (duas sílabas reduzem-se a uma: luar/lu-ar, seara/se-ara), metátese (na palavra, trocam-se letras: contrário/contrairo), sístole (acentua-se a anterior e a tónica faz-se átona: Samaria/Samária). Entre estas licenças, são correctíssimas as frases de Camões «Já a roxa manhã clara;» ou «Era deter ali os descobridores»; mas, sem uma sinalefa forçada, ou seja, se não impedíssemos o hiato («Já a» passa a ter só uma sílaba; «ali os» é igual a duas), não teríamos seis e dez sílabas, respectivamente.
Aqui chegados, percebe-se como também a prosa (do poema em prosa à prosa de tantos versos e, sobretudo, à de ficção) vive dessas licenças. Desde logo, no discurso de sujeitos particulares, cuja primeira pessoa autoriza facilidades, e nos diálogos, quando se procura reproduzir uma realidade linguística particular: desde as palatalizações de inspiração regionalista a vocábulos estropiados e invenções de foro próprio e codificado (concorrendo, ou não, para um idiolecto pessoal), de muito se serve a prosa de ontem e de hoje. Alguma, de toada lírica, em que seria possível segmentar unidades rítmicas, joga com certas licenças referidas, em especial, de tipo sintáctico (inversões, anacolutos...): nas grandes estruturas em prosa, elas não são mais, todavia, do que aspectos indiciáticos de leitura. Aqui e ali, porém, pesam bastante: veja-se o caso da linguagem juvenil, fragmentada, dispersa e suspensiva, e mais agora, com as mensagens de telemóvel, já paulatinamente descendo às folhas imaculadas; os léxicos próprios, atentatórios do normativo, nos universos marginais; soluções localistas de Nemésio (Mau Tempo no Canal), Torga, etc.; a transposição da nossa fala, redutora, indiferente a hiatos; o significativo ataque à ortografia em parágrafos experimentalistas; a liberdade de pontuação, ou a sua falta, no Nobel Saramago. Diríamos que, ao contrário da poesia, regida pela necessidade, a prosa é muito mais licenciosa, tal a liberdade de que se dota.
Em retórica, há outra «licença», que Fontanier (Les Figures du Discours), há quase duzentos anos, definia como «liberdade de expressão de que se usa por vezes com as grandes personagens, ou com a qual se diz mais do que é permitido ou conveniente dizer». Agora, não curamos desta; mas é caso para concluir que nem todos sabem, ou deviam, servir-se de tais licenças, poéticas ou não.