Os Descobrimentos e eu... (4) - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os Descobrimentos e eu... (4)

Era o início de Junho de 1952. Acabava o Verão e chegavam as monções do ano. Começava o ano lectivo e o meu primeiro contacto oficial com a língua portuguesa. A minha mãe levou-me para a escola primária. Não distava mais de meio quilómetro da minha casa. Era para inscrever-me no curso preparatório ou inicial. Mas passadas duas semanas a minha mãe viu que eu não aprendia nada, e eu disse-lhe que ninguém me atendia na escola. Eu não tinha razão para queixa nenhuma, porque divertia-me mais. A minha mãe zangou-se com o responsável do curso na escola e pediu para me aceitarem na primeira classe. Ficou a saber que eu não tinha a idade para isso. Faltavam-me ainda alguns meses para completar seis.

A minha mãe decidiu tirar-me da escola. Fiquei chateado por ter que abandonar os novos colegas de brincadeiras. A minha mãe não era uma pessoa para desistir, e para o cúmulo da minha desgraça decidiu levar-me nesse mesmo dia para a casa do senhor Caru Mashel (Caridade Maciel). Ele era já bastante conhecido na aldeia como um educador privado, e só aceitava treinar a quem ele quisesse. E desses poucos privilegiados, pouquíssimos perseveravam para além de uma semana ou duas.

Os sobreviventes eram considerados heróis da aldeia.

Caru Mashel aceitou ser meu professor para o ano. Exigiu atendimento diário, todas as manhãs sem falta! Eu fiquei quase lívido e não sabia se eu ouvia bem, quando ele pediu a licença da minha mãe para ele poder dar-me tanta sova quanta fosse necessária para conseguir os seus fins pedagógicos! A minha mãe manifestou estar de total acordo com ele, mas consolou-me dizendo que não precisaria nenhuma bordoada se eu me portasse bem. Ela estava radiante por ter conseguido o seu intento, e não só. O professor não requeria propinas, e ela ficava com menos despesas e menos travessuras do filho para aturar.

Caru Mashel era um velhote com uma carranca de amedrontar os mais bravos entre os traquinas. Ele tinha um solar grande, com um quintal e um muro ao redor, e com um portão que dava para a estrada principal que nós tínhamos que necessariamente utilizar sempre que fossemos fazer compras na loja do Sudhan, merceeiro hindu mais próximo, ou para os correios. Era a mesma estrada que ligava a minha aldeia à Mapuça, a vila capital do concelho. Chamo a atenção ao portão, porque tinha os dois lados cobertos por uma trepadeira de botões-de-ouro sempre em flor. Foi aí dentro do arbusto que eu passei uma manhã inteira de aulas logo na primeira semana, e voltei para a casa ao meio-dia para anunciar um fim normal da rotina escolar.

Caru Mashel tinha no seu quintal uma quantidade de árvores de mangas e chukus (sapotas). As frutas eram sempre uma tentação para os vizinhos e transeuntes. Explica-se porque a gente via o Caru Mashel sempre no seu balcão e atento às intenções pouco claras dos que manifestassem algum interesse pelo seu quintal. Um feixe de paus e uma "gôfinn" (fisga) estavam bem à mostra para dissuadir os atrevidos. Grandes furtos eram raros na era portuguesa em Goa. Dizem os goeses que nessa altura havia pouco para roubar. Além disso a falta de luz eléctrica nas aldeias não ajudava os ladrões, e havia casos de alguns deles terem caído nas pedreiras e poços quando perseguidos pelos locais.

Passada a primeira semana, o meu aproveitamento foi rápido. A única tentativa de escapar ao novo regime educativo foi descoberta quando Caru Mashel mandou saber da minha mãe porque eu me tinha ausentado no dia anterior. Não somente eu, também a minha mãe foi obrigada a pedir perdão ao velho. Foi a humilhação da minha mãe que me convenceu a não tentar fugir das minhas obrigações. A partir de então, para além do "abêxi" (abecedário), eu já dominava a tabuada toda e o vocabulário básico do português, incluindo designações das partes do corpo, objectos do quotidiano, etc. etc.

Caru Mashel já gostava de mim. Isso nunca me disse ele, mas eu sabia. De vez em quando já me dava uma mangas do seu quintal para comer durante o intervalo em que ele ia tomar a sua canja. Não posso esquecer do cão dele. Quando Caru Mashel não estivesse junto de mim por qualquer razão, eu não podia mexer um dedo sem o cão rosnar. E logo voltava Caru Mashel para saber o que se passava. Mas aos poucos também o cão acompanhava os sentimentos alterados do seu dono. Já tolerava alguns movimentos meus sem protesto. Mas curiosamente ele nunca se habituou aos peidos frequentes e prolongados do seu dono. É aí que eu controlava-me melhor. Eu soube mais tarde que uma grande parte dos alunos foi escorraçada por se divertir à custa deste problema fisiólogico do velho.

Em Junho seguinte lá estava eu de volta para a escola primária como aluno da primeira classe. Após o teste de admissão fui apresentado como um aluno modelo. Quem prestava o testemunho era a professora Belmira da Cruz.. Em métodos pedagógicos ela já não me apresentava nenhumas surpresas. Ela era conhecida pela apetência pelo emprego de régua para medir a capacidade da resistência dos seus alunos. Espero voltar a falar da minha professora. Ela acompanhou-me até o segundo grau do ensino primário, e eu acompanhei a ela para além da cova uns trinta anos mais tarde.

Sobre o autor

Teotónio R. de Souza (1947-2019). Historiador nascido em Goa, ex-sacerdote católico, foi fundador e diretor do Centro Xavier de Pesquisas Históricas. Era professor catedrático na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, no departamento de História. Foi diretor do jornal da Associação dos Cientistas Sociais do Espaço Lusófono e diretor-adjunto da revista Fluxos e Riscos- Revista de Estudos Sociais.