«(...) Soluções como as carinhas simplificadas chamadas de “emojis” buscam traduzir para o mundo digital nuances das quais o texto corrido não daria conta.
Elas são necessárias porque mensagens escritas não contam com o recurso da entonação da voz ou o gestual das mãos para transmitir sentimentos como raiva, tristeza ou desespero. (...)»
FOTO: REPRODUÇÃO
Soluções como as carinhas simplificadas chamadas de “emojis” buscam traduzir para o mundo digital nuances das quais o texto corrido não daria conta.
Elas são necessárias porque mensagens escritas não contam com o recurso da entonação da voz ou o gestual das mãos para transmitir sentimentos como raiva, tristeza ou desespero.
Publicado em dezembro de 2016 na revista acadêmica "Linha D’Água", ligada ao Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, o artigo “Tá serto! Só que não… Argumentação, enunciação, interdiscurso” destaca como as duas expressões presentes no título surgiram na internet com o objetivo de transmitir a ironia.
Escrito por Mónica Zoppi-Fontana e Sheila Elias de Oliveira, do Departamento de Linguística da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o trabalho mostra como as interjeições foram embaladas em sua evolução em hashtags como “serto” e “sqn”.
Ambas comunicam imediatamente: «não leia esta frase de forma literal!». Elas se prestam a lidar com o desafio de não gerar mal entendidos em um ambiente digital polarizado.
'Tá serto': ironia antes da internet
O artigo usa o exemplo da canção “Tá certo”, do cantor Oswaldo Montenegro para ilustrar como a interjeição em sua forma irônica já existia mesmo antes da internet.
Começando com a frase «tá certo eu dispenso e renego o baralho», o locutor da canção afirma que faria uma série de mudanças em sua vida em nome de sua mulher.
Mas a entonação melancólica e o conteúdo do texto deixam claro: na verdade não está nada certo, a resignação em realizar as mudanças é forçada.
Na internet, a interjeição com uso irônico fica explícita através de uma mudança na ortografia de uma das palavras que a formam: em vez de certo, usa-se “serto”, uma escrita deliberadamente incorreta, quando se toma a norma culta como referência.
«Embora a criação de interjeições seja tradicionalmente atribuída à oralidade, ‘tá serto!’ é claramente uma criação escrita» gestada na internet, afirma o trabalho.
Em sua manifestação oral depois da popularização na internet, o uso irônico da interjeição também é frequentemente transmitido pronunciando o r em retroflexo, popularmente conhecido como «r caipira». Ele também passa a ideia de erro proposital, já que esse tipo de pronúncia é associado pejorativamente à falta de cultura.
O “tá serto” da internet, segundo os pesquisadores, vem de um meme no qual um jovem negro faz o sinal de joia com uma favela ao fundo.
FOTO: REPRODUÇÃO
Novamente, a fala sobreposta à situação à qual se refere passa a ideia de ironia. Segundo o trabalho, há um «contraste entre, de um lado, a expressão linguística e o gestual do locutor e, de outro, as más condições de vida que aparecem ao fundo».
Para as autoras, há uma crítica social embutida no meme, que mostraria o «lugar particular do negro como alvo desta distribuição desigual [de riqueza]».
«Tá certo! levaria – por exemplo, à conclusão de que é aceitável que pessoas, e, dentre elas, massivamente negros, vivam em favelas», afirmam as autoras. Mas o uso da palavra com a ortografia iniciada em s (“tá serto!”) transmite a mensagem de que aquela situação não está, efetivamente, certa.
No caso, o enunciador oculto e absurdo, de onde partiria a ideia da qual se discorda ironicamente com “tá serto” é «o Estado brasileiro, ou a maioria branca de classe média que, na prática, enquanto coletividade, tem sido indiferente às desigualdades sociais e raciais do país», afirmam as pesquisadoras.
Na internet, a interjeição “tá serto” foi embalada na hashtag “#TaSerto” ou simplesmente “#Serto”, usada em plataformas como Twitter ou Facebook.
Só que não: uma forma de negar tudo o que foi dito até então
Em seu uso tradicional, a interjeição «só que» tem duas funções principais: a de restrição, ou relativização de uma ideia, e a de coordenação, ou seja, a articulação de ideias diversas.
Um exemplo do primeiro uso citado pelo trabalho é a frase «Rodolfo, ex-Raimundos, continua a fazer rock pesado. Só que com letras cheias de mensagens religiosas».
A expressão «só que» não nega a ideia de que Rodolfo continua fazendo rock pesado, mas a relativiza. Trata-se de rock pesado, porém com mensagens religiosas, ou seja, diferente da ideia original do que é rock exclusivamente pesado.
O uso da interjeição como forma de transmitir a ideia de “coordenação” está na frase «levei advertência, só que não quero mostrar». Levar advertência e não querer mostrá-la são duas ideias que não entram em conflito com ou restringem uma à outra. Pelo contrário, se reforçam.
A interjeição «só que» no meio das duas ideias serve para criar uma relação entre elas.
Da maneira como vem sendo utilizada na internet a interjeição «só que não» aparece, no entanto, de forma bem diversa, invariavelmente no final da frase.
FOTO: REPRODUÇÃO
Esse posicionamento deixa claro para que ela serve: nega tudo o que foi dito anteriormente. «Muito bonito, só que não». «Adoro segundas-feiras. Só que não».
A interjeição estabelece uma espécie de diálogo interno na frase, com dois enunciadores que se confrontam e explicitam a ironia.
O primeiro deles afirma algo, como ocorre com «que lindo!», na segunda imagem acima. E o segundo enunciador a nega frontalmente, sempre por meio da interjeição «só que não».
A expressão também tem uma formatação mais concisa nas hashtags #Soquenao, #SóQueNão, ou simplesmente #sqn.
Artigo publicado em dezembro de 2016 na revista Linha D´Água, do Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP (Universidade de São Paulo), sobre o uso de novas formas ortográficas na internet para expressar o que se circunscreve à oralidade. Transcrito, com a devida vénia, do jornal digital brasileiro "Nexo".