A edição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa deve saudar-se, primeiro porque finalmente saiu como obra completa, isto é de A a Z, ao contrário das duas anteriores tentativas (fins dos séculos XVIII e XX), que se ficaram pela letra A. O facto de ser constituído por dois volumes é secundário, poderia tê-lo sido só por um, como o da Academia Espanhola. O importante é ter sido por fim dado a lume, se bem que bastante atrasado relativamente ao da Academia Francesa, do tempo de Richelieu e com várias edições até hoje, e às cerca de vinte que já leva também o da Academia Espanhola. Mas publicou-se e é o que interessa; tal evento deve regozijar-nos a todos os que amamos a nossa língua e procuramos defender-lhe a integridade.
O seu preço é o normal duma obra desta envergadura, pelo que dele não temos de queixar-nos, tanto mais que os seus lucros parecem destinados à prossecução de trabalhos relativos à língua portuguesa, a levar a cabo pela Academia das Ciências de Lisboa.
Mariano Gago tinha razão quando disse que a Academia das Ciências de Lisboa «não é a autoridade detentora da verdade sobre a língua portuguesa», mesmo, acrescentamos nós, que tenha poderes legais para tanto. O mesmo se diga do falecido Cáceres Monteiro, quando afirmou que «o dicionário é um contributo positivo, mas discutível».
A Língua deve, na realidade, ser uma preocupação fundamental do Estado e de todos nós, visto constituir o principal factor de identificação e de união dos Portugueses.
Verbos: faltam indicações
Coisas discutíveis, claro que existem, e muitas, como seja, por exemplo (pág. XIX) a resolução de não indicar a transitividade ou a intransitividade dos verbos, que «legitima» o mau emprego dos complementos directo ou indirecto, justificado apenas por citações mais ou menos literárias.
O caso de os substantivos não virem classificados em abstractos ou concretos é inteiramente diferente e irrelevante, porquanto se trata de «arrumação» que nada influi no seu uso correcto.
Foi óptimo que o Dicionário tenha optado pela adopção da ortografia do Acordo Ortográfico de 1945, ainda em vigor em Portugal.
Quanto à correcção dos étimos, citamos só o exemplo do grego ‘archâios’, adjectivo que quer dizer «antigo», erradamente apontado com o significado de «origem», este pertencente ao substantivo ‘arché’ (isto ao tratar-se da etimologia do elemento de formação arqueo-).
Discutíveis formas de pronúncia
Foi correcto apresentar apenas formas de pronúncia do português da região central do País, incluindo Lisboa, pois é este o considerado padrão, aquele que se deve ensinar. Tal prática é internacional há muitos anos, considerando-se a melhor pronúncia de um país a das pessoas cultas da sua capital. Só que é pena que muitas das pronúncias indicadas não são dessas, mas sim as usadas por pessoas que não as seguem, preferindo, conscientemente ou não, as de tendências erróneas, isto é desvirtuadas, regionais ou ocasionalmente ouvidas a pseudocultas, sobretudo com acesso aos meios de comunicações orais (rádio e televisão).
O nosso "e" mudo, inexistente no Brasil, era transcrito erradamente, pelo menos até aos anos setenta, no Alfabeto Fonético Internacional (AFI), por meio do símbolo [ə] (um e invertido), o que só era exacto para o e mudo francês, completamente diferente do nosso, e também, por exemplo, para seus análogos do inglês, alemão e outros idiomas. No turco, nas línguas eslavas e no romeno (língua românica como o português), designadamente, encontra-se um fonema semelhante ao e mudo português, transcrito no AFI pelo símbolo de um "i" cortado ao meio por um tracinho, que nós propusemos, há mais de vinte anos, fosse aplicado igualmente à nossa língua, em trabalho publicado na revista Orbis, da Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), o que foi aceite, dando origem, directa ou indirectamente, a que no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa também figure em vez de [ə] para transcrição do e mudo português. O que não nos parece correcto é que o dicionário da ACL utilize os símbolos fonéticos da Associação Fonética Internacional sem informar os leitores da sua procedência, o que poderá levar os menos informados nestas lides a julgar que se trata de um sistema “inventado” pelos autores do Dicionário.
Fechado este longo parêntesis de ordem mais técnica, reafirmamos que nem sempre, portanto, a pronúncia dos vocábulos é a correcta nos usos dialectais, ou, ainda pior, a rádio e sobretudo a televisão espalham frequentemente pronúncias viciosas. Ora o Dicionário pactua com muitas, e assim, exemplificando, admite a pronúncia geração com e mudo, além da correcta e muito mais usual com e aberto (devido à crase os dois "ee" do meio da palavra, proveniente do latim generatione-), fundiram-na num e aberto, depois da síncope do "n" intervocálico. Há também grandes confusões na pronúncia do "u" de que (que no Acordo de 1931 levava trema quando se ouvia).
O "e" mudo inicial, constituindo sílaba só por si ou seguido de consoante, excepto "x", com que forma sílaba, o qual em português normal (isto é, na língua-padrão) vale de i, é frequentemente assinalado no Dicionário com a pronúncia de e fechado (ê) ou até aberto (é). Exemplificamos com «ervilha», «errante», «emigrante», etc. (note-se que «emigrante» e «emigrar se pronunciam correctamente como os seus homófonos «imigrante» e «imigrar»!).
«Militar», «vizinho», «ministro» (em compensação!) registam-se com a indicação de se proferirem como tais todos os "ii", o que constitui pronúncia pedante, artificial, substituída há dezenas de anos, e por vezes há séculos, pela com e mudo na primeira sílaba, devido à dissimilação, normal na língua portuguesa, de "i" – i em "e" (mudo) – i.
Não podemos nem devemos concordar com a opinião de alguns de que «o correcto é adoptar o que está no dicionário». Além de que já passou o tempo do ‘magister dixit’ (agora é o do «infalível nem o papa»!), o Dicionário induz a numerosas pronúncias erróneas, demasiado avançadas (que os ouvidos «normais» ainda consideram muito populares, próprias de analfabetos ou de semianalfabetos), tais como a de "o-" inicial proferido o aberto, em vez de fechado (ô), em muitos termos, por exemplo, «ovelha» ou «oleado». Mas o caso de «ovelha» ainda é mais gritante, visto adoptar-se a prolação do e medial como â (= òvâlha!), bem como nas palavras «cereja» (= cerâja!), «coelho» (= coâlho!) «concelho» (= conçâlho!), «bandeja» (= bandâja!), etc.
Trata-se de pronúncias incultas, ainda não legitimadas no português-padrão, que adopta para o referido e a prolação do ditongo âi («bandeja» como "bandâija», «cereja» como "cerâija", etc.). Por outro lado, a pronúncia deste "e" antes de palatal como "ê" é dialectal; portanto, «espelho», «vermelho» e congéneres, com este "e" medial a ler-se fechado (em vez de âi), só é lícito em quem a usa por ser a da sua terra, mas de modo algum o é no português-padrão. É este o modelo que devemos seguir e ensinar aos alunos portugueses ou estrangeiros.
É inadmissível, também, que o Dicionário, que em tantas ocorrências apresenta duas prolações (onde está a norma afinal?), só dê para «pelo» (contracção da preposição "per", anterior a "por") a pronúncia igual à do substantivo homógrafo, ignorando assim a pronúncia de «pelo» com "e" mudo, mais antiga e ainda adoptada por tanta gente. Parece que os professores (ou docentes, como agora dizem…) já não explicam que «pelo» (= pêlo) é «cabelo», como dantes faziam!
Outras pronúncias erróneas aconselhadas no Dicionário: a de «poesia» com "e" aberto, em vez de valer i e a de «perda», igualmente com "e" aberto em vez de fechado (ê), como recomendavam João de Deus e António José de Carvalho no Dicionário Prosódico de Portugal e Brasil, publicado no Porto e no Rio de Janeiro simultaneamente. Também o inultrapassável Gonçalves Viana e o grande Rebelo Gonçalves indicam ê ("e" fechado) na pronúncia de «perda», que está agora a sofrer influência de «perca», este vocábulo sim, com "e" aberto.
Mas abramos parêntesis, mais uma vez, para assinalar com louvor a prolação de «ressureição» com "e" mudo (como «religião», «ressuscitar», «redimir», etc.), apesar de grande parte do clero, nas missas, proferir com "e" aberto este termo, o que não está certo. Para lhe dar ênfase basta proferi-lo com o "e" mudo, em lugar de o deixar cair!
Não queremos, ainda, deixar de realçar outra pronúncia exacta (entre muitíssimas) patente no Dicionário: a de «excerto», com o "e" medial aberto, em lugar do fechado (ê) que é frequente ouvir na rádio e na TV.
Pouco cuidado nos estrangeirismos
A Academia de Ciências de Lisboa não tinha realmente qualquer obrigação de fazer concurso público para editar o Dicionário, mas dado que as suas soluções fazem lei, podia ter havido mais cuidado pelo menos com os estrangeirismos (especialmente com os sem aportuguesamento) e, como já se viu, com as prolações aconselhadas.
O Dicionário confunde por vezes (para apoiar certos semi-aportuguesamentos de estrangeirismos) latinismos e grafias arcaicas, esquecendo que nestas valia tudo, como sabem os especialistas. Scanner, stand, staff e stress deviam pois não ser semi-aportuguesadas e manter-se tal e qual, em inglês, havendo somente o cuidado de grafar estes termos entre aspas ou em itálico, para ficar bem patente a sua qualidade de estrangeirismo. Os grupos iniciais "sc" e "st" não fazem parte da língua portuguesa, escrita nem falada. As palavras provenientes do latim iniciadas em "s" + consoante surda deram vocábulos portugueses com um e prostético (usado em Portugal), enquanto o "s" deu, na pronúncia, x (ch), como em «espectáculo», «esterco», «escaleno». Claro que não poderíamos apor agora o tal "e" aos termos ingleses, dado que não os proferimos, ao contrário dos Brasileiros, que dizem /êstrésse/, etc. "St" não é reprovável por não estar consagrado na tradição ortográfica; é, repetimos, que não há (nem nunca houve) na língua portuguesa palavras assim enunciadas, o que é muito mais grave. "Stafe" enferma do mesmo mal que "stresse". Para evitar semi-aportuguesamentos deste tipo, reprováveis, como vimos, o único aportuguesamento razoável, em português europeu, seria «setresse», «setafe» e quejandos. Não se pode falar de analogia com «estado» ou «espada», porque pronunciamos o s de stress e de staff á inglesa (= ç), e não com o som de e ou ch, ocorrentes em «espírito», «estafermo», etc.
Aportuguesamentos do género da terminação inglesa -ing como –ingue são relativamente aceitáveis, nos casos em que tais estrangeirismos (ou neologismos externos, no dizer da Academia de Ciências de Lisboa) são adoptados, como no famigerado brífingue, quando não se puderem ou quiserem evitar.
Já eau-de-toilette é inadmissível num dicionário português; quando muito deve usar-se, como dantes, água de cheiro (uma vez que toilette, assim escrito, nada é na língua portuguesa). E "toilete" (assim mesmo!) não é português, porque se manda ler oi com o seu valor de uà em francês, e grafado só com um t, quando nesta língua é com dois!1
O uso de laser, em que o Dicionário recomenda a leitura inglesa, só prova a nossa subserviência a esta língua; Franceses, Espanhóis e Alemães, por exemplo, embora escrevendo a palavra em inglês, lêem-na de acordo com as suas línguas, sem ditongar o a (em âi), ao contrário do que se faz em Portugal. Porque não ler laser(= láser), aportuguesando a pronúncia do vocábulo? Em França evita-se o franglais, multando-se quem o usa publicamente por escrito (em etiquetas, letreiros, etc.). Aí estava um processo bem rendoso de o Estado aumentar as suas receitas!
Será que "ateliê" e "dossiê", isto é, atelier e dossier são mesmo indispensáveis? Cândido de Figueiredo, Vasco Botelho de Amaral e outros mostram bem que não.
Check-in é dos tais anglicismos que já ninguém vai deixar de usar, pelo que mais valia acolhê-lo como stop e outros já radicados entre os falantes portugueses, mas havendo sempre a preocupação de metê-los entre aspas ou pô-los em itálico. Fez bem o Dicionário, por outro lado, em não aportuguesar jazz (por causa das suas semelhanças com jaz, verbo jazer!).
Takeaway podia muito bem ter-se transformado em pegue e pague (nome que já vimos em tabuleta duma loja algarvia, embora grafada "Peg e Pag", se não estamos em erro).
O anglicismo know-how, como tantos outros termos estrangeiros, especialmente ingleses, está já tão divulgado que julgamos desnecessária a substituição por saber-fazer, que ninguém vai utilizar.
«Sítio» fica bem por site; é aportuguesamento satisfatório, que documenta aquilo que o Dicionário apelida de «neologismos externos», como acima foi dito. Neste exemplo o neologismo é apenas semântico, o que é comum a todas as línguas, cujo vocabulário vai constantemente assumindo novos significados.
"Plafom" para quê? Então tecto não fica muito melhor? Ficamos apenas com outro neologismo semântico!
Já concordamos com o enraizado «robô», assim aportuguesado (nunca se dão ao trabalho de dizer autómato!), esclarecendo apenas que o francês robot, que se tem empregado até agora também em Portugal, vem do checo robota (= trabalho) e não do húngaro. É preciso certo cuidado com as línguas estrangeiras quando se fazem afirmações destas!
Para quê à base de, galicismo inútil, se já tínhamos (e temos!) o nosso com base em? Talvez alguns achem mais bonito!
Meter no Dicionário o termo cretcheu é rematado disparate: por um lado por tratar-se de termo crioulo cabo-verdiano, por outro, por conter o grupo "tch", actualmente apenas dialectal, escrevendo-se sempre «ch», mesmo que se pronuncie assim esporadicamente. Motivos ambos, pois, para não se dever ter registado num dicionário que se pretende normalizador da língua portuguesa.
Nomes de moedas como lev, lek, taka, não se justifica que não se aportuguesem em leve, leque, taca, ou pelo menos se escrevam em itálico ou entre aspas. O mesmo se diga de "kwanza", para a unidade monetária angolana, anteriormente o topónimo Cuanza, nos tempos do «colonialismo». Outro tanto também se passa em países como Zimbábwe, com um "w" absolutamente intruso, desnecessário, perfeitamente substituível por um "u". Tal adopção de grafias escusadamente estrangeiradas é absolutamente condenável. Na mesma ordem de ideias, é ainda mais absurdo grafar rial o nome das unidades monetárias da Arábia Saudita e do Irão, quando ele vem do nosso real!
Francamente, é de mais!
"Icebergue" é aportuguesamento que só permite a pronúncia com i-, se querem dar ao vocábulo aquela com ai-, só havia duas hipóteses racionais: deixá-la em inglês, ou aportuguesá-la de facto ("aicebergue"). Mais uma vez se nota o perigo dos semi-aportuguesamentos!
Outro exagero, de índole muito diferente, é o acolhimento (de braços abertos!) do recentíssimo «bué», autêntico monstro dentro do português, muito pior, na verdade, que a adopção do termo «quilé», usado vulgarmente em calão, já há bastante tempo. Alguém disse com justa graça, a este respeito, que houve discriminação!
Como se calcula, muito mais haveria para dizer, mas queremos acabar do mesmo modo que começámos, ou seja, congratulando-nos com o almejado aparecimento do Dicionário da venerável Academia das Ciências de Lisboa. A despeito de todas as objecções atrás expressas.
1 N.E. – Os dicionários brasileiros registam a forma aportuguesada mais curial: toalete
[Além dos Textos Relacionados alusivos a esta obra (ao lado), ler também resenha publicada por John Robert Schmitz (Universidade Estadual de Campinas) na revista DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada, vol.23 no.1 São Paulo, 2007.]