DÚVIDAS

Vírgulas antes da preposição com

Gostaria de saber se eu posso ou não usar vírgulas antes da preposição "com".

Vou citar algumas frases de exemplo, que sempre me confundem.

«João me encarou, com os olhos abertos.»

«Leslie segurou a corda enquanto falava, com os olhos brilhando de entusiasmo.»

«Rose lançou um olhar furioso, com sua cabeça balançando.»

Na literatura inglesa, esses casos são mais difíceis de acontecer, pois eles costumam remover o com e deixar a frase intacta. Levantei uma dúvida sobre isso e me foi dito que o com deixaria as frases mais genuínas, pois, caso contrário, soaria a tradução.

Ou seja, o "com" é ou não necessário?

Resposta

De uma forma geral, o constituinte introduzido pela preposição com não é separado por vírgula do verbo sobre o qual incide, quer introduza um constituinte pedido pelo verbo (complemento oblíquo), como na frase (1), quer um constituinte não pedido pelo verbo (modificador do grupo verbal), como na frase (2):

(1) «Ele concorda com a Maria.»

(2) «Ele arranjou a cadeira com cola de madeira.»

Estes constituintes não levam vírgula porque não têm uma autonomia sintática ou prosódica relativamente ao predicado que integram.

No entanto, existem situações em que o sintagma preposicional introduzido por com assume autonomia prosódica e sintática, como acontece em (3), frase em que o constituinte tem a função semântica de comentário:

(3) «o João passou de ano e teve bons resultados, com todas as ajudas que teve.»

Neste caso, o sintagma preposicional é um constituinte periférico e leva vírgula a separá-lo da informação nuclear da frase, sobre a qual ele apresenta um comentário.

Note-se, ainda, que, com função de modificador, os sintagmas preposicionais introduzidos por com levam vírgula se intercalarem o verbo e os seus complementos, tal como ocorre em (4):

(4) «Ele cortou, com uma faca de serrilha, o pão fresco.»

O uso da vírgula pode também assinalar que o sintagma preposicional incide sobre o verbo nuclear da frase e não sobre o verbo de uma oração subordinada:

(5) «Ele ofereceu aquela cadeira secular para ser recordado por todos, com um gesto de simpatia.»

A vírgula poderá, ainda, ser usada estilisticamente, com o objetivo de destacar a situação descrita no sintagma preposicional, sobretudo em frase mais longas, nas quais o sintagma preposicional se encontra mais distante do núcleo verbal:

(6) «Ele ofereceu aquela cadeira secular ao seu neto, com um gesto de simpatia.»

No caso das frases apresentadas pelo consulente, a vírgula não é necessária do ponto de vista sintático e prosódico em (7):

(7) «João me encarou com os olhos abertos.»

Será necessário usar vírgula caso se pretenda assinalar que o sintagma preposicional incide sobre o constituinte «segurou a corda enquanto falava» e não apenas sobre o verbo falar. Estas diferentes relações sintáticas, que têm implicações semânticas, são assinaladas por parenteses retos em (8) e (9):

(8) «[Leslie segurou a corda](,) [enquanto falava com os olhos brilhando de entusiasmo].» (o brilho dos olhos acompanha o ato de falar)

(9) ««[Leslie segurou a corda enquanto falava], [com os olhos brilhando de entusiasmo].» (o brilho dos olhos acontece enquanto segura a corda)

Em (10), a vírgula será também aconselhável para barrar a interpretação em que o sintagma preposicional incide sobre o constituinte «olhar furioso», que não parece a correta:

(10) «Rose lançou um olhar furioso, com sua cabeça balançando.»

Relativamente à possibilidade de omissão da preposição com das frases acima, ela é possível, mas, é verdade que o resultado é mais artificial, pois constitui uma elipse.

Por fim, o sintagma preposicional introduzido por com pode, em diversas situações, ser substituído por uma oração gerundiva1, que será sempre introduzida por vírgula e é apenas um equivalente semântico, que naturalmente trará novas cambiantes à frase:

(11) «João me encarou, mantendo os olhos abertos.»

(12) «Leslie segurou a corda enquanto falava, mostrando os olhos brilhantes2 de entusiasmo.»

(13) «Rose lançou um olhar furioso, balançando a sua cabeça.»

Disponha sempre!

 

1. Cf., por exemplo, Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1557-1559.

2. Nesta sugestão de reformulação, substitui-se o gerúndio de brilhando pelo adjetivo brilhantes, para evitar a coocorrência de duas formas no gerúndio na mesma oração.

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