DÚVIDAS

«Ser omisso» e «ser omitido» (particípios duplos) + anáfora

Li esta frase: «Uma prova de que é opcional é o facto de poder ser omitido sem que a frase deixe de ser gramatical:» num artigo em Ciberdúvidas intitulado «Sem sela» é complemento circunstancial – I, da autoria da senhora Ana Carina Prokopyshyn.

A minha dúvida prende-se com «ser omitido» sobretudo depois de o meu Word me aconselhar a «ser omisso».

Numa consulta ao sítio de Mark Davies encontrei apenas três frases com “ser omitido”, ao passo que no Google encontrei um infindável número de casos.

Pergunto, pois, qual das duas está correcta?

Tendo em conta as regras dos particípios, dir-se-ia que seria «ser omisso», porém, são mais as vezes que vejo «ser omitido» que o contrário. A não ser que algo me esteja a escapar…

Gostava igualmente de deixar aqui esta frase que me parece ambígua: «Pelo meio, a voz de I Will always Love You, teve problemas com a filha, Bobbi Kristina, de 15 anos, que alegadamente a terá tentado matar», in revista Maria.

Quem tentou matar quem, a filha a mãe, ou esta a filha?

Agradecida.

Resposta

1. Comecemos pela primeira questão, que diz respeito aos duplos particípios, tema já abordado no Ciberdúvidas diversas vezes, pelo que aconselhamos o consulente a fazer uma pesquisa a fim de complementar a explicação que faremos de seguida, evitando, assim, repetir respostas já em linha.

A noção gramatical que o consulente tem dos particípios passados duplos é correcta. De facto, os particípios irregulares empregam-se com os verbos estar e ser, enquanto os regulares (terminados em -ado/ -ido) se empregam com os verbos ter e haver. A questão é a seguinte, quando um verbo tem só um particípio, este pode ser usado como adjectivo, mas quando tem dois, é o irregular que é usado, acompanhando substantivos. Vejamos exemplos:

 i. A folha solta (e não *soltada).
 ii. O rapaz expulso (e não *expulsado).

Contudo, há casos em que ambos os particípios podem ser usados neste contexto, assumindo significados diferentes. Seguem alguns exemplos:

iii. absorvido/absorto; incluído/incluso; envolvido/envolto; cativado/cativo; corrigido/correccto; omitido/omisso; etc.

Desta forma, é igualmente gramatical dizer «Ele foi corrigido» e «Ele foi correcto, sendo que a primeira acepção aponta para uma correcção por parte de outrem, enquanto a segunda é equivalente a dizer «ele teve uma atitude correcta».

Quanto aos particípios omitido e omisso, concretamente, e à semelhança dos restantes particípios referidos em iii., há uma ligeira nuance de significado entre o particípio irregular e o regular. Omitido denota «esquecido, escondido, não expresso etc.», e omisso denota «ausente, negligente, etc.» Podemos, então, encontrar frases com um ou outro, e há contextos de preferência para um e para o outro (o asterisco indica agramaticalidade, e o ponto de interrogação indica aceitabilidade duvidosa):

iv. Ele está omisso.
v. *Ele está omitido
vi. Ele é omisso.
vii. Ele é omitido.
viii. Ele pode ser omitido.
ix. ?Ele pode ser omisso.1
x. Ele despede-se se o assunto for omitido.
xii. ?Ele despede-se se o assunto for omisso.

Como podemos verificar pelos exemplos dados, o comportamento do particípio irregular do verbo omitir foge à regra geral dos particípios.

Há depois outros casos em que o particípio regular não só pode ser usado como é mesmo preferido, causando estranheza o uso do particípio irregular, como é o caso de suprimido/supresso.

2.
Passemos agora para a segunda questão, isto é, a passível ambiguidade da frase «Pelo meio, a voz de I Will always Love You, teve problemas com a filha, Bobbi Kristina, de 15 anos, que alegadamente a terá tentado matar»:

Para começar, a frase apresenta um erro crasso em qualquer língua, que consiste na colocação de uma vírgula entre o sujeito e o verbo:

«* a voz de I Will always Love You, teve problemas com a filha»

Por «voz de I Will always Love You» entendemos tratar-se de Whitney Houston, o que não interessa para aqui, mas ajuda a identificar o sujeito e a agramaticalidade da frase:

a) «* Whitney Houston, teve problemas com a filha»

Corrigido este erro, não parece haver complicações nem ambiguidades na frase. Foi a «filha que alegadamente terá tentado matar a mãe». Vemos isto pelo pronome anafórico a, abaixo destacado a negrito:

b) «Pelo meio, a voz de I Will always Love You teve problemas com a filha, Bobbi Kristina, de 15 anos, que alegadamente a terá tentado matar.»

Se fosse o contrário, ou seja, se fosse «a mãe a tentar matar a filha», não tínhamos o pronome anafórico, que tem precisamente a função de retomar o que anteriormente foi expresso. A frase teria a seguinte estrutura:

«Pelo meio, a voz de I Will always Love You teve problemas com a filha, Bobbi Kristina, de 15 anos, que alegadamente terá tentado matar.»

Esperamos ter esclarecido as duas questões.
Sempre ao seu dispor.

1 Note-se que o verbo auxiliar poder gera certa agramaticalidade na sua modalidade epistémica (noção de possibilidade, de incerteza) e não eôntica (noção de permissão), caso contrário a frase seria lícita.

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