Permita-me antes de mais, prezado consulente, que, por um lado, o felicite pela acuidade da sua leitura, e, por outro, lhe agradeça a possibilidade de retomar um aspecto que tem sido um pouco descurado pela gramática tradicional e que é o facto de existirem, em português, pronomes relativos sem antecedente expresso. A sua questão foca, aliás, dois aspectos da maior pertinência:
1 – a existência de frases relativas sem antecedente;
2 – o uso de expressões tradicionalmente consideradas como partículas de realce.
Relativas sem antecedente
Embora as gramáticas tradicionalmente não falem deste tipo de relativas, o certo é que todos as utilizamos. Vejamos as frases:
(1) Eles não têm que comer.
(2) Entreguei a encomenda a quem indicaste.
(3) Guardado está o bocado para quem o há-de comer.
A palavra sublinhada em cada uma das frases desempenha uma função sintáctica: que é o complemento directo de comer; quem em (2) é igualmente complemento directo, e em (3) é sujeito. Ao desempenharem funções que são características de nomes, ou substantivos, poderemos concluir que estas palavras são pronomes. Paradoxalmente, são pronomes que, contra todas as regras que a norma mais restrita nos indica, não têm expresso o nome que estão a substituir e que, como se trata de pronomes relativos, deveria ser o seu antecedente, ou seja, a palavra que estaria imediatamente antes.
Transpondo a mensagem das frases para o mundo real, cada uma delas representa uma realidade face à qual é possível reconstituir a entidade representada pelo antecedente em falta. Assim, o que falta em (1) é, genericamente, alimentos, embora a frase tenha outras equivalentes como Eles não têm nada que comer, ou Eles não têm o que comer. Note-se que estas duas frases em nada alteram a informação-base, e o que falta é sempre comida… Em (2) e (3) falta, de forma universal, a pessoa: Entreguei a encomenda à pessoa que indicaste; e Guardado está o bocado para a pessoa que o há-de comer.
As relativas sem antecedente expresso, ou relativas livres, desempenham na frase complexa as funções que caracterizam as restantes relativas, mas apresentam alguns aspectos próprios que advêm do facto de não estarem presas ao seu antecedente. Tomemos como exemplo a frase (1), em que o relativo serve de complemento directo. Numa relativa com antecedente, o facto de o pronome desempenhar funções de complemento directo implica, por vezes, uma frase intercalada: «O livro – que estou a ler – é muito interessante.»
Analisemos de novo a frase em apreço:
(4) «Sucede que não estou interessado.»
A frase que não estou interessado designa uma realidade mais abstracta do que qualquer dos exemplos analisados acima. Pode ser substituída por um pronome como isto, ou por uma expressão nominal muito genérica: uma coisa: «Sucede isto/Isto sucede; Sucede uma coisa/Uma coisa sucede.» Recordo que na resposta anterior apresentei alguns exemplos que ilustram o facto de o verbo suceder não ser impessoal, como «O mesmo sucede aos golfinhos». Também referi que, quando o sujeito é uma frase (ou oração) relativa, ela vinha obrigatoriamente depois do verbo, tal como se verifica em (4).
Uso de expressões tradicionalmente consideradas como partículas de realce
Para analisarmos este aspecto vamos retomar os exemplos que apresenta:
(5) «Sucede é que não estou interessado.»
(6) «O que sucede é que não estou interessado.»
As duas frases apresentadas pelo consulente inserem-se, segundo os estudos mais recentes, nas estruturas clivadas, que são utilizadas para destacar um constituinte da frase. A clivagem consiste, de uma forma muito simplista, na introdução de uma oração, ou frase, com o verbo ser, a que se associa quase sempre um pronome relativo sem antecedente. Ana Maria Brito, na Gramática da Língua Portuguesa de Mira Mateus e outras, pág. 685, apresenta seis tipos de clivagem distintos:
Partindo da frase (7) «O corvo comeu o queijo», destaca-se o complemento directo «o queijo»:
(7.1) Foi o queijo o que o corvo comeu.
(7.2) Foi o queijo que o corvo comeu.
(7.3) O que o corvo comeu foi o queijo.
(7.4) O queijo foi o que o corvo comeu.
(7.5) O queijo é que o corvo comeu.
(7.6) O corvo comeu foi o queijo.
A frase (5), que repete o exemplo apresentado pelo consulente, tem uma estrutura equivalente a (7.6). Note-se que o relativo presente em (5) faz parte da frase original, não foi introduzido pela estrutura clivada. Se escrevermos a frase no pretérito, talvez esse aspecto fique mais evidente: «Sucedeu foi que não estava interessado.» A frase (6) equivale a (7.3) apresentando apenas uma variação no tempo do verbo ser, o que se justifica pelo tempo utilizado na globalidade da frase. Repare-se que, tanto em (6) como em (7.3), porque a palavra que é um pronome relativo (…), é possível que lhe seja anteposto o demonstrativo o, que não pode ser considerado um verdadeiro antecedente, pois não remete para uma entidade real, dado que, também ele, substitui uma palavra que – essa, sim – designaria uma realidade.
Salienta-se ainda que nem todos os tipos de frase podem ter constituintes destacados por meio de clivagem, pelo que esta estrutura é, simultaneamente, utilizada nos estudos de sintaxe para testar a validade de outras estruturas.
Sintetizando, as três frases (4), (5) e (6) nada mais são do que variantes de uma mesma frase, correspondendo as duas últimas a frases em que, através da clivagem, se procura destacar o sujeito, que, neste caso, é uma frase relativa livre, ou sem antecedente.