O uso de literalmente como sinónimo de completamente é frequente, é mais antigo do que se pode pensar e até se encontra dicionarizado. No entanto, pode revelar-se discutível, tal como acontece com o seu homólogo anglo-saxão literally, que, do ponto da norma do inglês, tem sido alvo de censura.
Além de significar «de modo literal» e «exatamente», o advérbio literalmente ocorre no sentido de «completamente», uso que já está dicionarizado há algum tempo, conforme se pode confirmar pela consulta do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, publicado em 2001. A 1.ª edição do Dicionário Houaiss (2001) também o acolhe nessa aceção, bem como o dicionário da Porto Editora. Contudo, é verdade que o dicionário Priberam regista literalmente apenas como equivalente a «de modo literal» e «com as mesmas exatas palavras». Também se encontram atestações de literalmente = «completamente» na literatura do século XIX:
1. «O rosto, as mãos e a camisa do Sr. Joãozinho ficaram literalmente tingidas.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais in Corpus do Português)
2. «[...] os coronéis escarrancham-se com dor sobre os cavalos, os quebrados, o peito estralejando d'asma e tosses crónicas, e tão literalmente cobertos de medalhas, que dir-se-ia terem feito da farda, escarrador.» (Fialho de Almeida, Os Gatos, in Corpus do Português).
Note-se, porém, que estes e outros exemplos estão muitas vezes associados a construções hiperbólicas, como que justificando o emprego de literalmente no sentido de «realmente», «efetivamente», «na plenitude do sentido»1.
Dito isto, sabe-se que em inglês e em francês existe certa resistência a que literally e littéralement assumam o sentido de «completamente», pelo menos, em contextos mais formais . Em português, aceita-se que literalmente ocorra na aceção de «completamente/totalmente», mas, de algum modo à semelhança do que é recomendado para o inglês, deve haver algum cuidado com os contextos deste uso. Com efeito, dizer, por exemplo, que «uma vaga de turistas inundou literalmente a cidade» pode levar o efeito estilístico da hipérbole ao absurdo, uma vez que tal "vaga" e tal "inundação" são sempre metáforas e, portanto, não têm de ser entendidas literalmente.
Em suma, o português tem margem para uma maior tolerância com a extensão semântica de literalmente conforme aqui foi descrita. Na perspetiva do estilo, o problema do uso nesta aceção não estará num anglicismo semântico, mas antes no seu incremento por pressão de literally, cuja alta frequência é alvo de censura no próprio inglês.
1 Para o espanhol, é neste sentido que a Fundéu BBVA recomenda o uso de literalmente.
N. E. (11/05/2017) – Sobre os usos adequados ou impróprios de literalmente, leia-se o que escreveu o escritor, jornalista e crítico literário brasileiro Sérgio Rodrigues no artigo intitulado "Literalmente, mas nem tanto", que a revista Veja publicou em 26/05/2015 (agradece-se ao consultor Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para este apontamento).