A palavra "cresmática" não se encontra registada nas várias obras relativas ao vocabulário da língua portuguesa que consultámos, de que se destacam o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa1 (1940), da Academia das Ciências de Lisboa, o Vocabulário da Língua Portuguesa2 (1966), de Rebelo Gonçalves, o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa3 (1987), de José Pedro Machado, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa4 (1981), de José Pedro Machado (coord.), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa5 (2004), da Porto Editora, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa6 (2001) e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea7 (2001), da Academia das Ciências de Lisboa.
Surgem, sim, na grande maioria destas obras (à excepção do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), dois termos que se aproximam a nível fónico e vocabular: crestomatia e crematística.
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa atesta crestomatia (do grego chrestomátheia, «estudo das coisas úteis, boa instrução») como «selecção dos melhores ou dos mais úteis trechos de autores, como as compilações de Prohes e de Heládio», significado este que, talvez, derive do francês chrestomathie, «colecção de textos de autores clássicos» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa). Crestomatia remete, assim, para antologia de textos clássicos.
Importa referir que o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa nos fornece, também, uma informação que se nos afigura de grande relevância, uma vez que nos dá a indicação de uma obra contemporânea da acção d’Os Maias em cujo título surge crestomatia: «em 1850, no título desta obra: «Pequena Chrestomathia portugueza oferecida à mocidade estudiosa» (ob. cit, vol. II, p. 251).
Uma vez que essa obra citada se destina «à mocidade estudiosa», poderemos inferir que se trata de uma obra de carácter didá{#c|}tico, o que se encaixa no contexto desse excerto de Os Maias. Porque, a par de outras disciplinas algo invulgares — «a metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, […] a crítica das religiões comparadas» — a "cresmática" [ou não será «crestomatia»?] está incluída na enumeração das áreas de estudo classificadas pelo legislador como «infinitos terrores». Aliás, o carácter didáctico que se associa a crestomatia é comprovado pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: «colectânea de trechos em prosa ou verso escolhidos da obra de um ou mais autores, geralmente com finalidade didáctica; obra que contém esta colectânea; antologia.»
Por sua vez, a palavra crematística [do gr. chrematistiké, «(arte) dos negócios financeiros; a finança»] (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, ob. cit., p. 249), é usada para designar «ciência da produção de riquezas» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora) ou «arte de produzir riqueza; tratado de riquezas» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado), pois tal palavra é formada a partir do radical cremato-, de origem grega, «elemento de formação de palavras que exprime a ideia de objecto de uso, bens, riquezas». No entanto, embora este termo também se refira a ciência e, portanto, a área de estudo, inclinamo-nos mais para o primeiro termo — crestomatia.
Uma vez que o termo "cresmática", que se encontra nas últimas páginas de Os Maias (Eça de Queirós, Os Maias, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, s. d., p. 703), não está dicionarizado, isso significa que o narrador (pela voz de Ega, que conta as novidades de Portugal a Carlos, após 10 anos no estrangeiro) o colocou — como desvio à forma correcta —, intencionalmente, no texto do «programa dos exames de primeiras letras», elaborado pelo legislador da instrução. Através desta "palavra", o narrador desconstrói toda a seriedade e credibilidade que aquele legislador pretendia dar ao seu programa, colocando a ridículo o seu profissionalismo e a pretensa actualização da educação portuguesa. Assim, "cresmática" surge como algo, propositadamente, distorcido como misto de disfemismo e ironia, figuras estas que são «utilizadas com o propósito de contribuir para uma valorização […] negativa ou desvalorização de alguns seres, realidades ou situações» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 504), podendo ser a sua «intencionalidade […], a crítica, a polémica, a sátira ou o sarcasmo» (idem).
1Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1940
2 F. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editores, 1966
3 José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 4.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1987
4 José Pedro Machado (coord.), Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, Amigos do Livro Editores, 1981
5 Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 2004
6 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2001
7 Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Editorial Verbo, 2001