Para se compreender a enumeração dos acontecimentos, em que sobressai o desregramento, narrados no 2.º parágrafo do capítulo III de Memorial do Convento, de José Saramago, tem de se conhecer a realidade dos períodos religiosos (cristãos) e dos marcos litúrgicos católicos, pois o tempo em que decorre a acção deste romance — o do reinado de D. João V (séc. XVIII) — é um tempo marcado pelo absolutismo real, que, por sua vez, é apoiado pela Inquisição (o Santo Ofício), tribunal religioso caracterizado pela intolerância religiosa e pela violência dos seus métodos.
Embora o narrador se demarque pela lucidez e pelo olhar crítico (acutilante e irónico) com que encara o universo social desse tempo, o seu valor reside, sobretudo, na arte de nos narrar a realidade desse período distante em que o absolutismo político e o obscurantismo religioso dominavam, o que determinava a vida da população. Como o rei era o representante divino, o poder estava, também, centrado na Igreja. Por isso, tudo girava de acordo com o tempo religioso.
Ora, uma grande parte do 2.º parágrafo é dedicada ao período do Entrudo — «Correu o Entrudo essas ruas» — e isso não é por acaso, porque é um tempo que se destaca pelo divertimento, pela alegria e pelo prazer (o que parece desajustado ao ambiente repressivo vivido na altura), como que a preparar o período de penitência e de abstinência que se segue — o da Quaresma. De facto, o Entrudo é o período religioso que corresponde à festa profana do Carnaval, pois designa os «dias de festejo anteriores à Quarta-Feira de Cinzas» (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, 2004), dia este que inicia a Quaresma, o «período do ano litúrgico católico, que decorre, como preparação penitencial da Páscoa, desde Quarta-Feira de Cinzas» (idem). Se prestarmos atenção às particularidades que o narrador seleccionou para nos contar sobre as atitudes e as realidades que observou na população (que se considera) crente/religiosa — «quem pôde empanturrou-se de galinha e de carneiro, de sonhos e de filhós, deu umbigadas pelas esquinas quem não perde vaza autorizada, puseram-se rabos surriados em lombos fugidiços, esguichou-se água à cara com seringas de clisteres, sovaram-se incautos com réstias de cebolas, bebeu-se vinho até ao arroto e ao vómito, partiram-se panelas, tocaram-se gaitas, e se mais gente não se espojou, por travessas praças e becos, de barriga para o ar, é porque a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove» (José Saramago, Memorial do Convento, Lisboa, Caminho, 1984, p. 14) —, apercebemo-nos de que o excesso sobressai, cuidadosamente marcado por palavras fortes e por vocabulário rude: o excesso do prazer da comida e da bebida — o pecado da gula — destacado pela forma verbal «empanturrou-se» e pelas expressões escatológicas «bebeu-se vinho até ao arroto e ao vómito»; o do prazer do corpo e o de desafio ao pudor — o pecado da luxúria — presente em «deu umbigadas pelas esquinas»; o do prazer da violência e da agressividade abafadas em «esguichou-se água à cara com seringas de clisteres, sovaram-se incautos com réstias de cebolas, […] partiram-se panelas»… Enfim, através da enumeração dos vários a|tos que registou, o narrador quis representar o quadro violento de excessos — em que predomina a falta de equilíbrio, o mal, o erro, o que religiosamente é tido como pecado.
É óbvio que todo este rol de situações é intencional, pois pretende mostrar que esta população católica, que se diz seguidora das virtudes e dos princípios religiosos, vive de aparência, pois está ansiosa por viver momentos de prazer em que dê vazão aos seus instintos, aproveitando até ao limite o Entrudo em que a Igreja autoriza/concede alguma liberdade aos costumes. Por isso, o narrador utiliza ironicamente a expressão «quem não perde vaza autorizada». Nos três dias de Entrudo (= Carnaval), a população não perde tempo em que tem oportunidade de dar vazão ao prazer, porque esse prazer é autorizado, é permitido pela Igreja, para que depois, na Quaresma, se possa dedicar ao sacrifício, à penitência e à abstinência.
Repare-se como o narrador, consciente do pensamento da sociedade de então — de que tem um período muito limitado para o prazer, pois o fantasma dos difíceis dias da Quaresma não a abandona —, limita este excerto com referências à Quaresma, precedendo-o com a seguinte frase, a última do 1.º parágrafo — «Porém, a Quaresma, como o sol, quando nasce, é para todos» (idem) — e concluindo-o com a realidade que os espera — «Agora é tempo de pagar os cometidos excessos, mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se, ele rebelde, ele insurrecto, este corpo parco e porco da pocilga que é Lisboa./Vai sair a procissão de penitência. Castigámos a carne pelo jejum, maceremo-la agora pelo açoite. Comendo pouco purificam-se os humores, sofrendo alguma coisa escovam-se as costuras da alma» (idem).