DÚVIDAS

O número de auxiliares de uma locução verbal

Eu sempre aprendi que uma locução verbal é formada por um verbo auxiliar (conjugado pelo sujeito) + um verbo principal (sempre na forma nominal):

• As pessoas |devem ser| felizes.

Porém, com a prática de ler vários artigos, percebi a existência de "locuções verbais" com 3 ou 4 verbos.

• As casas devem ser feitas em um ano.

• Você pode querer tentar ser alguém.

As minhas dúvidas são:

1. Esses verbos podem ser chamados de locuções verbais?

2. Se sim, como seria a classificação desses 3/4 verbos em relação a "auxiliar e principal"?

«Você poderia ter cantado mais.»

Obrigado.

Resposta

É possível assinalar a existência de locuções verbais que incluem mais do que um verbo auxiliar.

Segundo Cunha e Cintra, «Os conjuntos formados de um verbo auxiliar com um verbo principal chamam-se locuções verbais. Nas locuções verbais conjuga-se apenas o auxiliar, pois o verbo principal vem sempre numa das formas nominais: no particípio, no gerúndio, ou no infinitivo pessoal.» (Nova Gramática do Português Contemporâneo. Edições Sá da Costa, p. 393)

Assim, de acordo com o que ficou exposto, as locuções verbais caracterizam-se por constituírem um grupo verbal que funciona como se se tratasse de um só verbo. Por essa razão, em (1) não estamos perante uma locução verbal:

(1) «A Rita decidiu ler durante a tarde.»

Neste caso particular, decidir e ler são dois verbos plenos, pelo que não formam uma locução verbal, que se caracteriza por funcionar como um só verbo. Na frase (1), ler é complemento direto do verbo nuclear da frase decidiu, que, por seu turno, não tem estatuto de verbo auxiliar.

Refira-se, todavia, que é possível identificar situações em que a locução verbal inclui mais do que um verbo auxiliar. É o que se verifica em (2):

(2) «O João deixou de ir participar no programa.»

Na frase (2), o verbo participar corresponde ao verbo central, enquanto deixar e ir são verbos auxiliares.

No que respeita às frases apresentadas pelo consulente, convém distinguir algumas situações à luz do que ficou exposto atrás. Assim, as frases (3) e (4) incluem locuções verbais:

(3) «As pessoas devem ser felizes.»

(4) «As casas devem ser feitas num ano.»

Todavia, a frase (5) já constitui uma situação diferente, uma vez que os verbos nela presentes mantêm autonomia, não formando uma locução.

(5) «Você pode querer tentar ser alguém.»

Assim, o facto de ser possível pronominalizar «tentar ser alguém» mostra que este constituinte pertence a uma oração distinta:

(5a) «Você pode querê-lo. (o = tentar ser alguém)»

Na frase, a locução verbal é formada apenas pelo auxiliar poder e pelo verbo principal querer.

Por seu turno, o constituinte «tentar ser alguém» também não forma uma locução. Se o inserirmos noutra frase, torna-se evidente a autonomia das formas verbais:

(6) «Ele tentou ser alguém.»

(6a) «Ele tentou-o / isto. (o / isto = ser alguém)»

Finalmente, a última frase apresentada pelo consulente:

(7) «Você poderia ter cantado mais.»

inclui uma locução verbal formado por dois verbos auxiliares (poder e ter) e um verbo principal (cantado).  

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