Com o adjectivo «sangrentos» para caracterizar os «olhos dum caleche», o sujeito poético pretende representar a impressão pura e imediata que tem e com que ficou do/da caleche1, sugerindo-nos a ilusão de óptica que as luzes da caleche lhe deixaram — a de uns olhos sangrentos, decerto, porque têm tonalidades avermelhadas que o incomodam, que o chocam e que o agridem na escuridão das ruas. A sugestão desagradável e violenta que as luzes deixam no sujeito poético, de tal forma inesperada e insólita, que o «espantam», é o que sobessai neste verso, valorizando-se a sensação de surpresa e de incómodo experimentada.
Portanto, trata-se de uma hipálage, em que se destaca o efeito criativo conseguido pela originalidade da construção, em que se tira partido da cor e da luminosidade num ambiente nocturno de contornos pouco definidos. Aqui, o que ressalta é a percepção com que se fica, obtida pela «atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionada» (Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia), em que o adjectivo expressa o sentir do sujeito.
Este é um exemplo de hipálage, e não de personificação, porque a personificação é explícita (uma vez que atribui, claramente, qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais) e não confere novos significados às palavras. Aqui, estamos perante um processo de valorização estilística em que se joga com o poder sugestivo da expressão «olhos sangrentos».
1 A palavra caleche é geralmente usada no género feminino. No entanto, ao longo da sua história, tem também ocorrido no masculino, como atesta o verso de Cesário Verde citado na pergunta e se indica no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa.