O papel dos gramáticos normativos é descrever (e normatizar) um modelo de uso supradialetal (a norma-padrão) a ser empregado em situações mais formais de comunicação, a fim de padronizar a língua tomada como culta, aquela de prestígio social. Os dicionaristas colaboram para isso também.
Quando se deseja extrair um padrão a partir das divergências normativas entre renomados estudiosos, é preciso verificar (1) qual é a visão majoritária entre eles (que não necessariamente pode ser única, pois a norma-padrão comporta formas variantes entre si) e (2) como se vêm usando as formas linguísticas contemporaneamente.
Para o ponto (1), é preciso cotejar o que ensinam os gramáticos e dicionaristas, para daí extrair a visão majoritária. No caso do estudo do léxico ou da ortografia, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras (ABL), também entra em cena, sobretudo como argumento de maior peso.
Para o ponto (2), é preciso verificar em textos escritos pelos melhores escritores do idioma, que são, em geral, considerados pela sociedade como os nossos literatos, ensaístas, articulistas de reconhecida qualidade escrita entre os seus pares e entre os leitores qualificados. Se se deseja conhecer a norma culta lusitana ou a norma culta brasileira, é preciso investigar a fundo como os escritores lusitanos ou brasileiros têm usado a língua (escrita) ao longo do tempo — com foco maior na norma contemporânea, para não se incorrer em anacronismo.
O ponto (2) costuma estar de acordo com a visão majoritária do ponto (1), pois existe uma premissa que governa as decisões dos estudiosos e normatizadores da língua: o uso determina a norma, por isso os gramáticos e dicionaristas vão colher nos usos linguísticos frequentes nos melhores escritores aquilo que definem como norma.
Eis aqui um exemplo¹: há gramáticos brasileiros que divergem quanto à concordância do verbo em estruturas com sujeito constituído de número percentual seguido de especificador: alguns entendem que o verbo só pode concordar com o percentual (Domingos P. Cegalla, p. ex.) e outros entendem que o verbo pode concordar com o percentual ou com o especificador (Evanildo Bechara, p. ex.), como se vê em:
– Só 1% das pessoas votou naquele político. (Cegalla)
– Só 1% das pessoas votou/votaram naquele político. (Bechara)
Para resolver esse imbróglio, verifica-se (1) a visão majoritária entre os estudiosos do padrão normativo da língua e, mais importante, (2) como se usa tal construção nos melhores escritores do idioma. Assim se bate o martelo².
Sempre às ordens!
¹Visto ser brasileiro o consulente, a explanação acima se baseia em fatos linguísticos da gramaticografia brasileira.
²Na norma-padrão brasileira, a visão do Bechara é a vencedora neste caso de concordância facultativa.