A colocação dos pronomes átonos é uma questão intricada e multímoda, que tem feito correr rios de tinta, de tal forma que o filólogo, escritor e lexicógrafo português Cândido de Figueiredo (1846–1925), depois de acesa polémica, a este respeito, com o escritor e jornalista brasileiro Paulino de Brito (1858–1919), deu à estampa uma obra de 400 páginas acerca do tema, sob o título O problema da colocação de pronomes (suplemento às gramáticas portuguesas), a qual conheceu oito edições entre 1909 e 1952.
O assunto, aparentemente inesgotável, continua a dar azo a inúmeros estudos de ambos os lados do Atlântico, como é o caso desta dissertação de 108 páginas, da autoria de Líbia Mara S. Saraiva, apresentada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais em 2008.
Também no Ciberdúvidas têm sido recorrentes as perguntas atinentes a esta matéria, sendo-me impossível citar aqui todas as respostas, pelo que me limito a trazer à colação as que me parecem mais pertinentes, como esta, de 2012, bastante resumida, mas judiciosa, ou esta (2003), que vale pela sua completude e sistematização, ou estoutra (2007), que se impõe pelo seu rigor terminológico, ou finalmente esta (1998), que prima por aduzir a perspetiva eufónica, muitas vezes descurada nestas lides.
Apesar da complexidade do tema, creio que não será difícil dar razão ao consulente, considerando como expectável, no caso da variante europeia da nossa língua, a versão «Eu batizo-te» — ou mesmo apenas «Batizo-te» — em vez de «Eu te batizo». Todavia, o certo é que foi a segunda que vingou. Porquê? Julgo tratar-se de um mero decalque da fórmula de batismo em latim, a qual, no rito romano, reza assim, na sua versão completa: Ego te baptizo in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti («Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo»). Como o latim funcionou durante largos séculos — e ainda hoje funciona, embora de forma bastante mais limitada — como língua litúrgica da Igreja Católica, é natural que, nesta fórmula, e possivelmente noutras, se tenha adotado, sem grandes considerações, a ordem das palavras que já existia em latim.
Em latim, a colocação dos pronomes — como, aliás, de quase todas as categorias de palavras… — é muito mais livre do que em português. Atente-se, por exemplo, na divisa latina da cidade brasileira de Porto Seguro (Jam ante Brasiliam ego, «Eu já (existia) antes do Brasil»), em que o pronome pessoal se acoberta no final da oração. Voltando aos pronomes oblíquos, é bom saber, porém, que é bastante frequente, na língua de Cícero, a colocação proclítica, ou seja, antes do verbo. Sem sairmos do domínio eclesiástico, além da já referida fórmula de batismo (ego te baptizo), encontramos a mesma colocação na fórmula de absolvição (ego te absolvo) e nas primeiras palavras de um famoso hino, por vezes atribuído a Santo Ambrósio (c.340–397): Te Deum laudamus, «Louvamos-te (como) Deus».
No entanto, a colocação enclítica, ou seja, depois do verbo, também era encontradiça em latim. Dela se serviu, por exemplo, São Tomás de Aquino (1225–1274) no seu hino Adoro te devote («Adoro-te com afeto), e a própria fórmula batismal admitia essa colocação no rito galicano (Baptizo te) e no rito caldaico (Ego baptizo te).1
É difícil saber ao certo quando terá começado a ser utilizada a fórmula «Eu te batizo» no ritual da Igreja em Portugal, pois até à realização do Concílio Vaticano II (1962–1965) o latim era a língua litúrgica por excelência. No entanto, já em 1604, nos Diálogos de Frei Amador Arrais (1530–1600), bispo de Portalegre, nos aparece com a seguinte redação: «Eu te baptizo em nome do Padre, Filho, & Spirito Sancto» (p. 173). Encontramo-la também na curiosa lenda da Ponte de Misarela, cuja origem se perde na voragem dos tempos…
1 Rev. William Palmer, M.A.: Origines liturgicae, or antiquities of the English ritual, and a dissertation on primitive liturgies. Vol. II, 4th edition. London: Francis & John Rivington 1845. 427 p.; p. 191.