DÚVIDAS

Estilo e voz passiva

Tenho notado um aumento no uso de construções passivas ou impessoais em comunicações formais, especialmente em contextos administrativos ou institucionais. Exemplos:

– «Relativamente ao assunto XXX, questiona-se o motivo de serem comunicados zero incidentes», por uma Câmara Municipal;

ou

– «Mais se refere que do email do senhor condómino não se entende que ponto é que pretende ver esclarecido», por uma empresa gestora de condomínios.

Este tipo de formulação parece-me uma coisa recente que não existia há alguns anos. As minhas dúvidas são:

1) Existe alguma razão gramatical, estilística ou até institucional para esta preferência por estruturas passivas ou impessoais?

2) Trata-se de uma tendência recente na língua portuguesa (de Portugal)?

3) Há vantagens específicas em termos de tom, neutralidade ou responsabilidade ao usar este tipo de construção?

Agradeço desde já qualquer esclarecimento!

Resposta

Em termos semânticos, as construções ativas permitem tipicamente dar uma maior proeminência ao sujeito enquanto constituinte que descreve o agente, experienciador ou a causa do estados de coisas descrito pelo predicado. Assim, em (1), o facto de o constituinte «O João» deter a função de sujeito corresponde ao maior relevo que tem na frase, pois trata-se do agente responsável por «questionar o motivo da comunicação»:

(1) «O João questionou o motivo da comunicação.»

Dos pontos de vista sintático e semântico, esta é a organização típica das orações ativas.

As frases passivas verbais, por seu turno, caracterizam-se por “despromover” o sujeito para a função de complemento agente da passiva, como ilustra o constituinte «o João» em (2):

(2) «O motivo da comunicação foi questionado pelo João.»

A opção pela passiva pode, deste modo, estar associada a uma intenção de secundarização do agente de determinada situação. Note-se, ainda, que, em determinados contextos, é possível omitir o agente da passiva, como em (3):

(3) «O motivo da comunicação foi questionado.»

Nestes casos, estamos perante um agente implícito de referência indeterminada, o que pode estar associado a diversas intenções, como a de evitar a repetição do agente, que se recupera pelo contexto, ou a de ocultar a identidade do agente, que, deste modo, não é associado à responsabilidade por um dado estado de coisas.

A frase ativa pode também ser convertida numa passiva pronominal ou reflexa, como em (4):

(4) «Questionou-se o motivo da comunicação.»

Nestas frases, o complemento direto da frase ativa desempenha a função de sujeito (neste caso, o constituinte «o motivo da comunicação») e o sujeito da frase ativa fica implícito. Esta opção permite associar ao agente da frase um valor de indeterminação, que pode também corresponder a um desejo de não identificação do agente, para proteger a sua identidade, ou a uma intenção de desresponsabilização relativamente a um dado estado de coisas1.

Refira-se também que não possuímos dados que nos permitam afirmar que a opção por este tipo de construções passivas seja uma tendência recente. Note-se, todavia, que não se trata de uma estrutura registada historicamente.

Em comunicações formais, que dizem respeito a um organismo coletivo, o uso deste tipo de estruturas permite que o agente das situações descritas seja entendido como esse mesmo organismo e não associado a uma pessoa específica, que, em muitas situações, respeita ordens superiores.

Disponha sempre!  

1 Para mais informações, consulte-se este artigo de Inês Gama. 

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