Parece-nos a análise proposta pelo consulente justa, uma vez que estamos perante um funcionamento particular do verbo ser.
O constituinte «era uma vez» é uma expressão fixa com um valor equivalente a “há muito tempo” (Dicionário Houaiss). Não obstante, esta expressão tem a particularidade de ser analisável e de se combinar com diferentes constituintes.
Assim, em «era uma vez», o verbo ser é o verbo nuclear, que aqui funciona como verbo intransitivo, sendo o grupo nominal que o segue o seu sujeito. Por essa razão, nas construções seguintes «um príncipe», «um homem» e «uma aldeia» têm a função de sujeito do verbo ser:
(1) «Era uma vez um príncipe»
(2) «Era uma vez um homem»
(3) «Era uma vez uma aldeia»
Repare-se que esta construção tem, todavia, a particularidade de manter o singular ainda que o sujeito seja plural:
(4) «Era uma vez dois príncipes»
(5) «Era uma vez três homens»
(6) «Era uma vez duas aldeias»
Este facto sintático inusitado é justificado por Bechara, citando A.G. Kury: «a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez”, leva a que o verbo fique no singular ainda quando o sujeito seja um plural: Disse que era uma vez dois (...) compadres, um rico e outro pobre [CC.1, 31]. Era uma vez três moças muito bonitas e trabalhadeiras [CC.1, 120].»
De acordo com esta análise sintática, a locução adverbial «uma vez» desempenha a função de modificador do grupo verbal (ou de complemento circunstancial)2.
Disponha sempre!
1. cf. E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 454.
2. De acordo com o quadro da Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967, que já não se encontra em vigor no ensino básico e secundário em Portugal, onde se segue atualmente a proposta constante do Dicionário Terminológico.