A expressão «era uma vez», que se usa para iniciar as narrativas infantis tradicionais, é invariável quer venha seguida de nome (ou nomes) no singular ou no plural. Por esse motivo, a função sintáctica desse nome tem suscitado alguma controvérsia.
No entanto, este tipo de construção (verbo no singular + sujeito no plural) pode ser atribuído a uma «irregularidade de concordância» entre sujeito e predicado.
É a explicação dada em Lições de Português, de Sousa Silveira (Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1960, pág. 218), que transcrevemos:
«A língua moderna, sobretudo na sua modalidade popular, ainda revela vestígios dessa antiga arbitrariedade [irregularidade de concordância], principalmente quando o sujeito do plural vem depois do predicado: tende este a ficar no singular como se, empregando primeiro o predicado, a pessoa que fala o deixasse no singular por ainda não ter pensado em que número vai dizer o respectivo sujeito.»
Também Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática Portuguesa (37.ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Lucerna, 2002, pág. 559), assume e complementa esta posição:
«Na expressão, que introduz narrações, do tipo de era uma princesa, o verbo ser é intransitivo, com o significado de existir, funcionando como sujeito o substantivo seguinte, com o qual concorda:
Era uma princesa muito formosa que vivia num castelo de cristal.
Eram quatro irmãs tatibitates e a mãe delas tinha muito desgosto com esse defeito (…).
Com a expressão era uma vez uma princesa, continua o verbo ser como intransitivo e o substantivo seguinte como sujeito; todavia, como diz A. G. Kury, “a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez” leva a que o verbo fique no singular ainda que o sujeito seja um plural:
Disse que era uma vez dois (…) compadres, um rico e outro pobre […].
Era uma vez três moças muito bonitas e trabalhadeiras […].
A verdade é que muitos idiomas, em textos de níveis distensos, apresentam essas irregularidades que se afastam do uso normal e padrão, principalmente quando o verbo é anunciado antes do sujeito, com alguma distância, como se o falante ao começar a oração pelo verbo ainda não tivesse decidido como iria apresentar formalmente a expressão do sujeito.»
Resolvida que está, com a ajuda dos mestres, esta questão fulcral, passemos à análise sintá{#c|}tica da frase «Era uma vez um rapaz que decidiu ir correr o mundo», pedida pela consulente:
Oração subordinante: «Era uma vez um rapaz»
Predicado: «Era uma vez»
Sujeito: «um rapaz»
Complemento circunstancial de tempo: «uma vez»
Oração subordinada adjectiva relativa restritiva: «que decidiu ir correr o mundo»
Predicado: «decidiu ir correr o mundo»
Sujeito: «que» (referido a «rapaz»)
Complemento directo: «ir correr o mundo»