Marcelo Rebelo de Sousa é um comentador de acontecimentos políticos, protagonista de um programa intitulado "As Escolhas de Marcelo", emitido aos domingos no primeiro canal da televisão pública portuguesa, RTP. No último domingo, dia 17 deste mês de Abril, resolveu alargar o âmbito do seu comentário e criticar erros de políticos na utilização da língua portuguesa. Mas... diz o povo, no seu entendimento de séculos, «Olha para ti e fica-te por aí» ou «No melhor pano cai a nódoa». E desta vez caiu. E não foi uma, não; foram, pelo menos, seis. A mostrar que todos, quando falamos e estamos preocupados mais com o conteúdo do que com a forma, por vezes cometemos erros, e por isso não nos fica bem criticar tão fortemente os outros, desvalorizando o contexto em que ocorreram esses erros criticados (num caso, um erro quase no final de uma entrevista de uma hora em directo; nos outros, um erro em discurso espontâneo, de improviso).
Efectivamente, o referido comentador, no programa desse domingo, um programa semanal de apenas cerca de meia hora, além de utilizar um registo de língua com expressões familiares e populares, algumas de gosto discutível (por exemplo, «um bocado chato»), cometeu erros de diversa natureza.
1. Começo pelo erro de pronúncia. A palavra vereadores foi pronunciada com "e" mudo na sílaba inicial. Ora, vereadores tem um som aberto na sílaba inicial, tal como vereação ou verear.
2. O segundo é um erro vulgaríssimo, que, de tão vulgar, talvez um dia se passe a inserir na norma. Trata-se da utilização de "ter que" em vez de ter de. A propósito do CDS/PP1, o comentador utilizou as seguintes expressões: «Tem que apanhar o comboio cavaquista», «tem que ir numa carruagem cómoda», «tem que começar a definir», «tem que fazer coligações com», etc.
Ora, no sentido de assumir uma obrigação, ser obrigado a fazer algo, a expressão correcta é ter de: «Tem de apanhar», «tem de começar», etc. Ter que utiliza-se no sentido de «ter algo para», como, por exemplo, «ele tem que fazer», significando que «tem alguma coisa para fazer», «tem trabalho para fazer». Se se pretendesse dizer que ele «deve fazer», que ele «está obrigado a fazer» algo, então, a expressão seria «ele tem de fazer», seguida do complemento directo, como acontece, por exemplo, na frase «ele tem de fazer uma opção», que significa «ele é obrigado a fazer uma opção.»
3. O terceiro erro consistiu na utilização da expressão «Custou caríssimo» no sentido de «custou muito dinheiro», «importou em muito dinheiro», quando se referiu ao custo da Casa da Música, no Porto. Ora, «custar caro» é uma expressão que se utiliza em sentido figurado para referir as consequências dolorosas de uma atitude, o facto de ter ocasionado grande sacrifício, como, por exemplo: «Fiz o que queria, mas custou-me caro.» Não era o caso. Para referir o custo real de algo, o valor que foi pago, como se pretendia, poderia dizer-se «foi caríssimo», «ficou caríssimo», e, se se quisesse utilizar o verbo custar, então, ele deveria ser seguido de um substantivo, numeral ou advérbio de quantidade (e não de um adjectivo): «Custou milhares de euros», «custou uma fortuna», «custou muito dinheiro», etc.
4. O quarto é um erro de troca de fonemas. Na escrita, seria um erro de ortografia. O comentador empregou a palavra "turculento" (referindo-se ao presidente do Governo Regional da Madeira), em vez de «truculento», que seria a palavra correcta.
5. O quinto é um erro de regência verbal. Ainda a respeito da Casa da Música, à pergunta da jornalista se já lá tinha ido («Já foi lá?»), o comentador responde: «Não fui dentro, mas estive fora e vi o projecto e tal...» A construção «não fui dentro» aqui utilizada está errada. A construção correcta poderia ser uma destas: «Não entrei», «não vi por dentro», «não estive lá dentro», «não fui lá dentro». «Ir dentro» tem, em calão, outro significado, que não era o pretendido pelo comentador. E «estive fora» também não é a expressão adequada neste contexto, por razões semelhantes.
6. Por último, referindo-se ao PP1, o comentador disse que a sua ideologia é de «inspiração teoricamente meia democrata-cristão». Nesta expressão, não há um, mas dois erros. Além do erro de concordância entre a palavra «inspiração» e o adjectivo (que deveria estar no feminino: democrata-cristã), existe um erro na utilização da palavra "meia". O comentador deveria ter dito «inspiração meio democrata-cristã», pois a palavra meio é aqui um advérbio, e não um adjectivo. É um advérbio que está a modificar o adjectivo «democrata-cristã».
Tais erros talvez possam ter ocorrido num acto de preocupação pelo conteúdo, mais do que pela forma, e por se tratar de um discurso não totalmente preparado (uma vez que decorreu da conversa que foi fluindo). Não duvidamos que o comentador domina melhor a língua do que aquilo que mostrou neste programa e que levou a que fosse surpreendente a crítica mordaz que fez às incorrecções linguísticas dos políticos visados.
O que não invalida, é bom que se saiba, que todos devamos porfiar por falar bem a língua portuguesa, afinal o traço comum que nos une.
1 Partido Popular, herdeiro do antigo CDS, partido português de direita, que integrou o anterior Governo de coligação com o PSD em Portugal, até 20 de Fevereiro último.