Nas fontes consultadas – dicionários gerais ou de regionalismos –, a palavra morrinhanha ou qualquer expressão que a inclua não têm entrada. Mas o vocábulo parece ser uma deturpação de murinhanha, variante de beruanha, termo que, no Brasil, designa um inseto transmissor de doenças. Menos claro se torna o desenvolvimento da expressão «da morrinhanha».
Uma pesquisa em páginas da Internet permite detetar a forma murinhanha1, que tem, por exemplo, registo no dicionário de Caldas Aulete, como variante de beruanha, assim definida:
«s. f. || (Bras.) inseto díptero hematófago, da família dos eumiídeos (Stomoxis calcitrans, Geof.). Vive nos excrementos dos equinos e transmite várias doenças ao homem (tifo, carbúnculo etc.). Também é conhecido pelos nomes de moscabrava, mosca-do-bagaço, mosca-do-gado, mosca-dos-estábulos, murianha, muruanha e murinhanha.»
O Dicionário Houaiss (2001) também tem entrada para este vocábulo e junta mais informação, remetendo para beruanha:
«murinhanha: substantivo feminino Rubrica: entomologia. 1 m.q. beruanha ('designação comum'); 2 m.q. mosca-de-estábulo (Stomoxys calcitrans)»
Na entrada beruanha, lê-se o seguinte comentário etimológico:
«tupi mberu'ãya "mosca varejeira", composição do tupi mbe'ru "mosca, inseto" + 'ãya "com ferrão, dente"; as variantes são devidas às flutuações na adaptação ao português da consoante bilabial sonora pré-nasalizada mb- > b-/m-, às alterações de timbre das vogais em posição pretônica, ao desenvolvimento em 'ãya de consoante nasal palatal etc. [...]»
No mesmo comentário, enumeram-se as variantes de beruanha (ibidem): bernanha, beronha, bironha, biruanha, buruanha, meruanha, murianha, murinhanha, muruanha.
É, pois, muito provável que morrinhanha seja uma deturpação desenvolvida em Portugal a partir de murinhanha. A grafia com o e o reforço do r serão devidos à analogia com morrinha. Semanticamente, também há convergência entre murinhanha e morrinha, pelos semas que remetem para a noção de doença, patologia: por um lado, a murinhanha, inseto incómodo, que se alimenta de sangue e pode transmitir doenças; por outro, morrinha, também no sentido de «doença».
Refira-se que há atestações literárias do vocábulo morrinhanha, como é o caso do poema "O ar do lisboeta" (jornal A Capital, 22 junho 1973), texto de Alexandre O'Neill incluído em Jerónimo Pizarro, Acordeón. Antología Poética (2019, p. 260): «o ar morrinhanha do lisboeta».
Na antologia de Jerónimo Pizarro, morrinhanha é traduzido em espanhol por morriñoso, adjetivo correspondente ao espanhol e galego morriña, «sentimento e estado de ânimo melancólico e depressivo, en particular o causado pola nostalgia da terra» (dicionário da Real Academia Galega). Poderia pensar-se que se trata de uma criação de O'Neill, tal como acontece no poema em apreço com barrigatesta e lisbonudo2. Mas a provável relação com murinhanha dá morrinhanha como palavra anterior à escrita do poema, que foi alargando o seu campo semântico, talvez pela sua reanálise como amálgama de morrinha, «tristeza, preguiça» (e mais comummente «chuva miúda») com o vulgarismo nhanha, «esperma, substância viscosa» (cf. Infopédia). A expressividade da palavra parece ter dado até lugar a outros usos, como sugere a recolha de uma ocorrência interpretável como «fulano» na secção histórica do Corpus do Português, de Mark Davies:
(1) «Os nossos jovens, esmagadoramente praças e predominantemente oriundos das zonas rurais, "vomitavam" frases de cartão de boas-festas, decoradas à pressa e sob "ameaça": Vê lá não te enganes, senão temos que te cortar – avisava o fotocine, com ordens para poupar ao máximo os 30 metros de fita de cada bobine Gevapan, em 16 mm. "Daqui fala o primeiro cabo Morrinhanha para a minha mãe, a minha mulher, os meus irmãos, o meu cunhado e a minha noiva. Estou bem. Adeus, até ao meu regresso".»
E na secção dialetal do referido corpus, morinhanha figura num texto como sinónimo de cabeça, em «dores de morrinhanha»:
(2) «Eis, senão quando, um dia o meu "mainato" pediu-me alguns [comprimidos] para debelar fortes dores de "morrinhanha" (cabeça)» (blogue CCVA2415 – Companhia de Cavalaria 2415 – Moçambique 1968 / 1970, num comentário ao romance O Anjo Branco (2010), de José Rodrigues dos Santos).
Em (2), sendo Moçambique o cenário da ação, não é de excluir alguma interferência de uma das línguas bantas deste país na forma morrinhanha. Fica a conjetura, enquanto não é aqui possível carrear informação mais conclusiva.
Quanto à expressão «da morrinhanha», o seu significado tem variantes, como parecem ilustrar as seguintes abonações:
(3) «"Eu sou um pintor da morrinhana, pá! Estes quadros deviam ser todos queimados! Que grande porcaria, pá." [...]» (Mário de Carvalho, Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina, Editorial Caminho, 2003, p. 174, citado por Natália Constâncio, Subversão e Paródia na Obra de Mário de Carvalho, Faculdade de Ciências Sociais e Humans, 2012, p. 353).
(4) «Esta é daquelas,das quais se diz: "É de morrinhanha". Parabéns ao Zé, pela coragem e espírito saudável, com que mostra estas "preciosidades"» (comentário de 20/11/2007 a uma publicação publicação do blogue Chaves Antiga, 19/11/2007).
Em (3), «da morrinhana» exibe a variante morrinhana e é interpretável depreciativamente, como o mesmo que «da treta, que não é para levar a sério»3. Em (4), a expressão parecer ter valor positivo, em alto grau, tornando-se sinónima de «de truz, de arromba, excelente».
1 Agradeço a Rosalina Goulão, Albertina Sousa Pereira e Maria João Filgueiras (Porto) a chamada de atenção para o registo de murinhanha e das suas variantes.
2 Palavras que ocorrem em dois versos do poema "O ar do lisboeta": «o ar barrigatesta do lisboeta» e «o ar lisbonudo do lisboeta».
3 O uso da palavra morrinhanha com este significado inspirou com toda a probabilidade a criação dos topónimos inventados "S. João da Morrunhanha" e "S. Miguel da Morrunhanha", de função cómica, mencionados nas primeiras quatro séries do grupo de humoristas portuguesas Gato Fedorento.
N. E. – Resposta atualizada em 17/12/2022.