Sobre o facto de que, e retomando as palavras do consulente, «em poesia, após as reticências, ora são usadas letras maiúsculas, ora... minúsculas», não nos podemos esquecer de que o texto poético — assim como todo o texto literário — goza do estatuto da licença poética, ou seja, da liberdade de escrita, que o liberta das restrições às quais todo o outro tipo de discurso/texto está sujeito — o de seguir as normas linguísticas. Assim, é comum surgirem no texto poético construções e «estruturas desconhecidas da língua falada» (Alycia Yllera, Estilística, Poética e Semiótica Literária, Coimbra, Almedina, 1979, p. 210), podendo a linguagem poética «explorar factos inexistentes na língua quotidiana sem ser por isso antigramatical, agramatical ou não-gramatical» (idem).
Tratando-se de um caso relacionado com a pontuação — o da arbitrariedade do uso da maiúscula ou de minúscula após reticências — em poesia, portanto, de um texto que não foi construído sob uma perspectiva lógica, a de um texto comum, devemos ter em conta que nos encontramos perante um tipo de texto que se encontra num outro plano — o poético —, marcado pela subjectividade, pela simbologia e pela plurissignificação. Enquanto poesia, goza do estatuto de diferença própria de toda a obra de arte — o da liberdade poética —, pois a escrita poética/literária move-se, precisamente, no universo da criação do sujeito poético, não estando constrangida à utilização normativa do padrão. Por isso, quando nos deparamos com estruturas invulgares num texto literário, não poderemos esquecer-nos de que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 147), uma vez que «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (idem, p. 95).
Relativamente à segunda questão — «E quando usar as reticências?» —, consideramos útil relacionar a sua utilização desse sinal de pontuação com o valor de reticentia, o étimo latino, que significa «silêncio, omissão do que se deveria dizer» (Rodrigo de Sá Nogueira, Guia Alfabética de Pontuação, 2.ª ed., Lisboa, Clássica Editora, 1989, p. 83), uma vez que «as reticências marcam uma interrupção na frase» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, p. 654), destacando-se como «sinal [que] indica que alguma coisa fica por dizer, que a frase está inacabada» (Tereza Moura Guedes, «Como adquirir um maior domínio da linguagem», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1991, p. 124).
Classificadas como sinais melódicos — porque «marcam sobretudo a melodia» — por Cunha e Cunha (ob. cit., p. 650) e como «sinais subjectivos» por Jaime Rebelo, em Pontuação e Análise Sintáctica (Coimbra, Coimbra Editora, 1957, p. 50), as reticências empregam-se em casos muito variados, tais como1:
a) para indicar que se interrompeu uma ideia que se começou a exprimir e se passa a considerações acessórias:
«Quanto a seu pai… às vezes penso… Asseguro-lhe que é verdade. Penso que ela se esqueceu de tudo. Que teve uma crise de amnésia e perdeu determinados acontecimentos» (Maria Judite Carvalho, TM);
b) para indicar uma divagação por parte de quem está a falar, um desvio na linha do pensamento:
«Mas não pense que sou pr´aí alguma gulosa. Muito menos uma glutona. Gosto do que é bom, pronto! E acho que tenho direito a isso… todos os dias a lavar cabeças! Muitas delas que são um nojo…» (David Mourão-Ferreira, AF);
c) para sugerir uma continuidade daquilo que é realmente dito, indicando que a ideia que se pretende exprimir não se completa com o término da frase, a qual só pode ser feita pela imaginação do leitor:
«Vossa Senhoria bem me percebe… Nem tudo se pode dizer…» (Camilo Castelo Branco, EM);
d) para marcar suspensões provocadas por hesitação, surpresa, dúvida ou timidez de quem fala:
«— Homem, vê lá… Pensa bem no que vais fazer… — avisou o prior. — A Raquel é boa rapariga… Mas a geração… Olha, eu não digo nada. Resolve tu…» (Miguel Torga, NCM);
«— Eu… eu… queria… um agasalho — respondeu soluçando a miserável» (Graça Aranha, OC);
e) para assinalar certas inflexões de natureza emocional (de alegria, de tristeza, de cólera, de sarcasmo, etc.):
«— Há tempos eu não chorava!... Pois se me vieram lágrimas…, devagarinho, como gateando, subiram… tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho… e ainda quentes, no arranco do galope, lá caíam elas!...» (Simões Lopes Neto, CGLS);
f) para realçar uma palavra ou uma expressão, colocando-as antes de cada uma delas:
«E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!...» (Florbela Espanca, S);
g) para reproduzir, nos diálogos, não uma suspensão do tom de voz, mas o corte da frase de uma personagem pela interferência da fala de outra:
— Nada… nada… — atalhou a mulher» (Aníbal Machado, HR);
Como os outros sinais melódicos, as reticências têm valor pausal, que é mais acentuado quando elas se combinam com outro sinal de pontuação, sendo possíveis duas combinações:
a) com um sinal pausal (vírgula, ou ponto-e-vírgula), caso em que as reticências têm apenas valor melódico, pois a pausa é indicada pela vírgula ou pelo ponto-e-vírgula que as segue:
«Passai, ó vagas…, mas passai de manso!» (Castro Alves, OC);
b) com um sinal melódico (ponto de interrogação, ou ponto de exclamação, ou os dois conjugados), caso em que as reticências prolongam a duração das inflexões interrogativa e exclamativa e lhes acrescentam certos matizes particulares (nota de incerteza, reforço na intensidade ou na altura de voz):
— Estás a ver se disfarças?!...» (Alves Redol, F);
— Coitada!... quem diria… quem imaginaria uma coisa assim?!...» (António Assis Júnior, SM);
1 Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 2002, pp. 657-657.