Não nos parece que, sendo «ir onde» possível, «então tudo é permitido». Não é tudo permitido, justamente porque o uso de uma língua está efetivamente condicionado por regras gramaticais que têm coerência interna e que decorrem (talvez nem sempre) de princípios ou dispositivos cognitivos mais gerais, que ainda hoje estão a ser investigados. Mas não se pode ignorar outra força atuante, a dos padrões linguísticos que o uso da língua foi cimentando. Se o caso em discussão falta à lógica e aos esquemas cognitivos que dão consistência à gramática, o mesmo não se pode dizer acerca da sua conformidade com certas compatibilidades sedimentadas pela história da língua.
Não se trata de negar a diferença no uso de onde e aonde, que atualmente existe na norma; mas a história da língua e o estudo da variação linguística legitimam o uso de onde em detrimento de aonde. Com efeito, existem exemplos literários – não de «centenas de bons autores», mas, pelo menos, de «bons autores» – que atestam a associação do verbo ir com onde quer em contexto interrogativo (direto e indireto) quer em construções relativas (note-se que não se trata de ocorrências de «ir em (meio de transporte ou semelhante)»):
(1) «Onde ia ele? Que ia ele fazer?» (A. Garrett, O Arco de Sant'Ana)
(2) «- Onde vai, seu estúpido? - gritou-lhe o tio. - Vou-me. - Sente-se ali!» (Eça de Queirós, Singularidades de uma Rapariga Loura)
(3) «... conforme se pode saber escutando o que os deputados dizem entre si, nos sítios onde vão, muito embora em sessão pública desmintam e asfixiem a corajosa voz que ouse trazer a lume estas verdades» (Fialho de Almeida, Gatos 2)
(4) «Perguntei-lhe onde ia.» (Joaquim Paço d'Arcos, Tons Verdes em Fundo Escuro, 1946)
Este e outros exemplos – de escritores apenas de Portugal, é certo – são de molde a sugerir que a norma linguística que define as condições de ocorrência de aonde (locativo de destino) e onde (locativo estático) é relativamente recente (cf. Said Ali, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, Edições Melhoramentos, 1965, p. 187, e Gramática do Português, F. C. Gulbenkian, 2013, pp. 2103/2104).
De qualquer modo, é preciso sublinhar que a perspetiva da resposta em causa não foi a de recomendar o emprego de ir com onde. O que aí se pretendeu foi assinalar a existência de um uso hoje minoritário, que, no entanto, encontra fundamento na história da língua e não tem de ser classificado como claro erro. Por outras palavras, não é completamente seguro que Camilo Castelo Branco tivesse escrito onde pensando no complemento locativo do verbo bater, porque na sua época e mais tarde, havia bons escritores em Portugal que até construíam frases em que o mesmo advérbio era selecionado pelo verbo ir.