DÚVIDAS

Aonde vs. onde (II)

Gostaria, com a devida licença, de discordar de parte da resposta dada a José de Vasconcelos Saraiva, em 24/1/2020, a qual me causou grande estranheza.

Lá se diz:

«No entanto, e apesar da explicação acima dada, é importante citar a Gramática de Português da Fundação Calouste Gulbenkian (2013, p. 2102): «Quando o verbo da oração relativa é ir, embora o valor locativo seja direcional, pode também usar-se o pronome relativo não preposicionado: cf. a cidade onde eles foram é muito longe da minha.»

E se diz mais:

«Ora, esta passagem confirma que, com o verbo ir da oração relativa, podemos optar pelo advérbio aonde ou pelo advérbio onde com um valor locativo dinâmico sem que se incorra em erro.»

Digo eu: se «ir onde» é possível, então tudo é permitido... A entender-se como correta tal construção, é-se autorizado a dizer: "o lugar o qual (em vez de 'ao qual') ele foi é perigoso"; "o lugar que (em vez de 'a que') ele foi é perigoso"

A bem da verdade, não consigo entender por que uma passagem da referida gramática (sem citação da fonte, aliás) pode dar a "confirmação" para se fazer tal uso do advérbio "aonde", contrariando frontalmente a norma e o bom uso de centenas de bons escritores. Aonde se quer chegar com isso?

A propósito, quanto à frase de Camilo («Sabes onde vai bater o meu dinheiro»), na minha opinião, ele usou onde, porque é justamente o advérbio que deveria usar, remetendo a bater (com o sentido de «chegar», mas regendo a preposição em), e não ao verbo auxiliar (ir). Ele, como bom ser humano, poderia ter errado, e não deixaria de ser o consagrado escritor que é, mas não foi dessa vez.

Resposta

Não nos parece que, sendo «ir onde» possível, «então tudo é permitido». Não é tudo permitido, justamente porque o uso de uma língua está efetivamente condicionado por regras gramaticais que têm coerência interna e que decorrem (talvez nem sempre) de princípios ou dispositivos cognitivos mais gerais, que ainda hoje estão a ser  investigados. Mas não se pode ignorar outra força atuante, a dos padrões linguísticos que o uso da língua  foi cimentando. Se o caso em discussão falta à lógica e aos esquemas cognitivos que dão consistência à gramática, o mesmo não se pode dizer acerca da sua conformidade com certas compatibilidades sedimentadas pela história da língua.

Não se trata de negar a diferença no uso de onde e aonde, que atualmente existe na norma; mas a história da língua e o estudo da variação linguística legitimam o uso de onde em detrimento de aonde. Com efeito, existem exemplos literários – não de «centenas de bons autores», mas, pelo menos, de «bons autores» – que atestam a associação do verbo ir  com onde quer em contexto interrogativo (direto e indireto) quer em construções relativas (note-se que não se trata de ocorrências de «ir em (meio de transporte ou semelhante)»):

(1) «Onde ia ele? Que ia ele fazer?» (A. Garrett, O Arco de Sant'Ana)

(2) «- Onde vai, seu estúpido? - gritou-lhe o tio. - Vou-me. - Sente-se ali!» (Eça de Queirós, Singularidades de uma Rapariga Loura)

(3) «... conforme se pode saber escutando o que os deputados dizem entre si, nos sítios onde vão, muito embora em sessão pública desmintam e asfixiem a corajosa voz que ouse trazer a lume estas verdades» (Fialho de Almeida, Gatos 2)

(4) «Perguntei-lhe onde ia.» (Joaquim Paço d'Arcos, Tons Verdes em Fundo Escuro, 1946)

Este e outros exemplos – de escritores apenas de Portugal, é certo – são de molde a sugerir que a norma linguística que define as condições de ocorrência de aonde (locativo de destino) e onde (locativo estático) é relativamente recente (cf. Said Ali, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, Edições Melhoramentos, 1965, p. 187, e Gramática do Português, F. C. Gulbenkian, 2013, pp. 2103/2104).

De qualquer modo, é preciso sublinhar que a perspetiva da resposta em causa não foi a de recomendar o emprego de ir com onde. O que aí se pretendeu foi assinalar a existência de um uso hoje minoritário, que, no entanto, encontra fundamento na história da língua e não tem de ser classificado como claro erro. Por outras palavras, não é completamente seguro que Camilo Castelo Branco tivesse escrito onde pensando no complemento locativo do verbo bater, porque na sua época e mais tarde, havia bons escritores em Portugal que até construíam frases em que o mesmo advérbio era selecionado pelo verbo ir.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa