Cintra e Cunha, na Nova Gramática do Português Contemporâneo, incluem a palavra você na categoria «pronome de tratamento» (pp. 292-298) e confirmam que, «no português do Brasil, o uso de tu restringe-se ao extremo sul do país e a alguns pontos da região norte, ainda não suficientemente delimitados. Em quase todo o território brasileiro, foi ele substituído por você como forma de intimidade. Você também se emprega [...] como tratamento de igual para igual ou de superior para inferior». Acrescentam ainda os referidos autores que é este último valor, «de tratamento igualitário ou de superior para inferior (em idade, em classe social, em hierarquia), e apenas este, o que você possui no português normal europeu, onde só excepcionalmente — e em certas camadas sociais altas — aparece usado como forma carinhosa de intimidade».
Actualmente, já é possível precisar que o uso do tu, no Brasil, é bastante frequente no Norte, no Nordeste (excluindo a Bahia e Sergipe), no Sul (excluindo o Paraná) e no Rio de Janeiro, «mas conjugado frequentemente na 3.ª pessoa do singular: Tu fala, tu foi, tu é, excetuando-se as formas em que a sílaba tônica é a última, como tu 'tás». Acrescente-se ainda que «em algumas regiões do Sul do Brasil (sul, sudoeste e oeste do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e do Norte (Pará), o uso do tu na forma culta (conjugado na 2.ª pessoa do singular) é até bem mais usado que o você. Em alguns lugares do Sul, do Norte e em praticamente todo o Nordeste (excluindo a Bahia), o tratamento por tu é mais comum, usando-se os pronomes pessoais oblíquos de forma mais consistente (p. ex., para ti, com o mesmo significado que teria para você)». (Fonte: Wikipédia.)
Posto isto, e no que diz respeito concretamente à origem e evolução histórica do pronome de tratamento você, o filólogo brasileiro Antenor Nascentes, por exemplo («Fórmulas de tratamento no Brasil nos séculos XIX e XX», Revista Portuguesa de Filologia, Coimbra: Casa do Castelo, 1950, p. 116), traça os seguintes estágios de mudança: Vossa Mercê > vossemecê > vosmecê > vosm’cê > voscê > você [> ocê > cê].
Ora, segundo Amadeu Amaral (O Dialeto Caipira. São Paulo: Hucitec, 1955), o uso generalizado da forma vossa mercê, assim como as suas variantes, regista-se, em Portugal, a partir dos fins do século XV, tendo sido levado para o Brasil pela população não aristocrática (da qual faziam parte os diversos contingentes de pessoas que se estabeleceram no Brasil como colonos, em meados do século XVI). Nesta altura, segundo Amaral, a forma de tratamento vós já era considerada obsoleta, e o processo de simplificação da forma vossa mercê já se encontrava suficientemente consolidado. Assim, o português levado para o Brasil já fora com variantes de vossa mercê como formas de tratamento. Ainda de acordo com Nascentes, a expressão «[...] vossa mercê agradava todo mundo, [sendo que] a classe humilde não tardou a apoderar-se da fórmula nova para uso próprio» (p. 116).
A professora brasileira Maria Teresa Camargo Biderman («Formas de tratamento e estruturas sociais». In: Alfa: Revista de Linguística.Marília: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1972-1973, n. 18-19, p. 339-381), de maneira mais abrangente, defende que «a forma você, que hoje não tem, em Portugal, o uso tão generalizado quanto tem no Brasil, resultou da evolução de vossa mercê, [...] importada da Espanha, através das relações intensas existentes entre a sociedade portuguesa e a espanhola, quando Portugal se encontrava sob o domínio da Espanha [final do século XVI e primeira metade do século XVII]». Esta expressão, afiança a autora, «tem a sua origem na forma vuestra merced, surgida na Espanha, para ocupar a lacuna deixada pelo tratamento vós no século XVI, e é durante tal período que [...] sofre modificações fonéticas, resultando na forma usted». Valerá ainda a pena referir que, segundo Biderman, é de valorizar a naturalidade com que se deu a simplificação, no Brasil (ao contrário do que aconteceu em Portugal), das formas de tratamento. E a tendência brasileira, segundo a citada professora, é para expandir ainda mais a área coberta por você, que terá substituído definitivamente, naquele país, o tu «na virada do século XIX para o século XX», baseando-se Biderman na correspondência de Machado de Assis. Apresenta a linguista (ainda que de forma um tanto ou quanto datada) a seguinte explicação para tal abertura e simplificação: «A sociedade brasileira, por ser tida como uma sociedade aberta, e a portuguesa, como uma sociedade fechada. [...] a portuguesa é uma sociedade arcaica cujos padrões e relações interpessoais já de há muito desapareceram nas outras sociedades europeias, mesmo no mundo latino mais conservador, em geral. [...] existe forte tendência na sociedade brasileira para assimilar e absorver os padrões dos países desenvolvidos [...]. A mera observação dos grandes centros brasileiros, confrontados com as metrópoles portuguesas, evidenciará a disparidade.»
Já o filólogo Manuel Rodrigues Lapa (Estilística da Língua Portuguesa, 3.ª ed., São Paulo: Fontes, 1897-1991) afirma que, em Portugal, a expressão de tratamento vossa mercê surgiu nos fins do século XIV, como forma de tratamento ao rei.
Quanto ao início do uso efectivo do pronome de tratamento você, Carlos Faraco (O Tratamento Você em Português: Uma abordagem histórica. 13.ª ed., Curitiba: UFPR, 1996, pp. 51-82) refere que esta é forma usada em Portugal desde o século XVII, entrando no português do Brasil com os portugueses.
De novo Maria Teresa Camargo Biderman, em estudo já aqui citado, p. 362, à falta de documentação fidedigna anterior, defende que, em Portugal, «você como tratamento intermediário entre tu e vossa mercê apareceu provavelmente no século XVIII [...] coexistindo [...] com vossa mercê e com valor ligeiramente diferente». Acrescenta ainda que «até meados do século XIX você circunscreve-se ao trato do superior ao inferior, a saber: 1) critério de idade (pais a filhos, tios a sobrinhos) ; 2) de posição (magistrado a cidadãos comuns, professor a aluno) ; 3) iguais não íntimos, ou de relação assimétrica (homem e mulher, quando primos). Assim o atestam escritos de Machado de Assis, Manoel Antônio de Almeida, Martins Pena».
Por outro lado, Célia Lopes e Maria Eugênia Duarte («O processo evolutivo vossa mercê > você (português) e vuestra merced > usted (espanhol)». In: ABRALIN, 26, 2001. Boletim ABRALIN, 2001, pp. 106-109.) apontam o século XVIII «como início do processo de pronominalização de vossa mercê, e o início do século XIX como a efetiva gramaticalização de você». Analisando de forma entroncada os factores tempo e tipo de relação social, as referidas linguistas identificam o século XVIII como um momento em que «vossa mercê e você não se diferenciam nos diálogos entre inferior/superior e superior/inferior em peças teatrais, o que é interpretado como indicativo de que ambas as formas de tratamento expressam cortesia/reverência»
Finalmente, a professora Odete Menon («A história de você». In: GUEDES, Marymárcia, BERLINCK, Rosane de Andrade, MURAKAWA, Clotilde de Almeida Azevedo (Orgs.). Teoria e análise linguísticas: novas trilhas. Araraquara: UNESP, 2006, p. 99-160) assegura que «é na obra de Francisco Manuel de Melo (1608-1666), Feira de Anexins, que aparece, pela primeira vez o novo pronome, grafado vossês. Apesar de essa obra não ter sido publicada em vida do autor, ela foi composta no séc. XVII. Assim, remontamos em um século o uso do novo pronome de segunda pessoa do plural, pois segundo afirmação de Biderman [...] é no séc. XVIII que o vós estaria arcaizado».
Bibliografia: para além das obras já referenciadas, Clézio Roberto Gonçalves, «De vossa mercê a cê: caminhos, percursos e trilhas», Cadernos do CNLF, Volume XIV, n.º 4, Anais do XIV CNLF (Tomo 3); Elaine Chaves, A implementação do pronome você: a contribuição das pistas gráficas. 2006. Dissertação (Mestrado em Estudos Lingüísticos) — Universidade Federal de Minas Gerais.