DÚVIDAS

A etimologia de rota e roteiro

Prezados especialistas do sítio Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, o melhor sobre nosso idioma que conheço!

Escrevo para solicitar, gentilmente, um esclarecimento etimológico e histórico um tanto mais completo quanto possível para uma pesquisa acadêmica. Esta trata dos intitulados «roteiros experimentais» no Brasil (talvez «guias de procedimentos laboratoriais» ou «guião experimental» em Portugal), o que me levou a investigar a origem e a evolução semântica da palavra "roteiro". Minha pesquisa preliminar indica o seguinte:

(a) Formação: roteiro deriva de rota + eiro;

(b) Raízes latinas: rota pode ter origem em rupta («caminho aberto», do verbo rumpere) ou rotulus («rolo, registro escrito»); e,

(c) Contexto histórico: O termo consolidou-se durante as Grandes Navegações para designar textos-guias de navegação detalhados.

Gostaria de colaboração para compreender os seguintes pontos:

1. Datação e consolidação lexical: existem evidências textuais (em documentos medievais ou do português arcaico) que permitam datar, mesmo que aproximadamente, o período em que a palavra roteiro se consolidou no vocabulário português comum, diferenciando-se de sinônimos como itinerário ou rota?

2. Prevalência da raiz: qual das hipóteses latinas (rupta ou rotulus) é considerada a raiz dominante pela etimologia acadêmica portuguesa para a palavra rota, e, consequentemente, para roteiro? Proviria do francês route?

3. Evolução semântica do sufixo -eiro: gostaria de um parecer sobre a evolução do sufixo -eiro neste contexto. Seria a analogia com roupeiro (lugar que contém roupas, aqui no Brasil, pelo menos) semanticamente válida para roteiro (documento que contém rotas, instruções, ou caminhos a seguir), justificando a sua transição do meio náutico para o científico e artístico (guias de laboratório, guiões de cinema, etc.)?

Esta palavra realmente é um desafio para mim.

Agradeço a atenção e o valioso contributo.

Resposta

Em resposta à consulta que nos enviou e muito agradecemos, apresentamos o seguinte parecer, apoiado nas fontes a que temos acesso:

I. Sobre rota

1. Há consenso quanto a considerar que roteiro deriva de rota.

2. Também é consensual a origem de rota no latim (via) rupta, «caminho aberto na floresta», embora não seja clara a história da sua transmissão. Com efeito, a palavra rota tem atestações apenas a partir do século XV, época em que igualmente se usava a forma rota, em castelhano e em catalão, com o mesmo significado. No entanto, nestas línguas, rota passou a ruta, talvez por influência do francês route, que tem o mesmo significado, além da aceção mais corrente, que é «estrada».

O português manteve rota, e este o também ocorre no derivado derrota, vogal que se conserva no castelhano e catalão derrota, sinónimo de rota/ruta que exibe o, apesar da já referida forma ruta que se fixou nestas duas línguas. No Dicionário Houaiss e no Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, de Joan Coromines e José Antonio Pascual, não se menciona a proposta etimológica alternativa, a de rota ter evoluído de rotulus. Esta hipótese parece, portanto, pouco plausível ou, pelo menos, muito pouco explorada.

3. Sobre se rota se fixou em português a partir da expansão ultramarina, não temos elementos conclusivos. No Corpus do Português, rota, no sentido de «caminho», encontra atestações a partir do século XV, o século em que se iniciou o expansionismo português. Este é também o período em que há intensas relações culturais com os centros políticos dos outros reinos ibéricos, designadamente, com Aragão, que na época era uma potência também marítima. Dir-se-ia que rota e as formas cognatas do castelhano e do catalão já circulavam há algum tempo entre falantes das línguas românicas da Península Ibérica no contexto da atividade marítima comercial e militar (ver José Mattoso, dir. História de Portugal. No Alvorecer da Modernidade (1480-1620). Vol. III, 1994).

II. Quanto a roteiro

1. Acerca da datação de roteiro, a data mais recuada que tem sido aceite é a consignada, por exemplo, no Dicionário Houaiss, onde se atribui a atestação mais antiga a meados do século XVII. No entanto, é possível ir mais atrás, a registos de meados do século XVI, em contextos relativos a viagens e navegações (cf. secção histórica do Corpus do Português, de Mark Davies).

2. É bem provável que roteiro tenha derivado do radical rot- de rota, e não do francês route. É de realçar que, em castelhano, se regista derrotero, que pode bem indicar ser possível a derivação de rota (português) e derrota (em castelhano) com os sufixos cognatos -eiro e -ero .

3. A respeito do sufixo -eiro, é plausível que roteiro tenha surgido não por analogia com roupeiro, caso este em que -eiro sugere algum tipo de «serventia referente à cousa denotada pelo vocábulo primitivo» (Said Ali, Gramática Histórica da Língua Portuguesa, 1965, p. 242/243), mas, sim, como adjetivo para qualificar algum substantivo que se subentende. Sugere-se aqui, portanto, que a génese do português roteiro e do castelhano derrotero tenham origem em expressão como «documento roteiro» (não atestada), isto é, «documento relativo a rota», e «libro derrotero» (neste último caso, consulte-se o Wiktionary em espanhol).

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