DÚVIDAS

A construção «que não»

Epiphânio Dias, na sua Sintaxe histórica, pág. 277 [2.ª edição, 1933], considera a conjunção que seguida de não como causal com o valor de e, mas não alcancei o porquê; quer-me parecer que «que não» nos contextos indicados pelo autor equivale a exceto.

Pode classificar-se ainda hoje o que que aparece nesse contexto como causal, como pensa Epiphânio Dias? Pode ver-se nesse que um que relativo substituível por o qual?

Obrigado.

Resposta

Epiphânio da Silva Dias refere que «parece ter valor causal a conjuncção que (seguida de não) empregada nos contrastes com a significação aparente de e» (Sintaxe histórica portuguesa, p. 277).

Quando o autor menciona a «significação aparente de e», estará a fazer alusão ao facto de a conjunção que funcionar como a conjunção copulativa, o que se verifica até pela possibilidade sintática de aquela substituir que, como se observa na citação d’Os Lusíadas, apresentada como exemplo pelo autor:

(1) «[…] maravilha / Feita de Deus, que não de humanos braços» (VIII, 24)

(2) «[…] maravilha / Feita de Deus, e não de humanos braços»

Como é sabido, a conjunção copulativa e tem a capacidade de veicular diferentes valores de nexo, que vão da adição, à temporalidade ou ao contraste, por exemplo. Parece ser a estes valores que o autor se refere quando afirma que a conjunção que é empregada nos contrastes, realçando, assim, o valor de contraste que se estabelece entre os dois membros conectados pela conjunção. Com efeito, na frase apresentada, estabelece-se um contraste entre «Deus» e «humanos braços».

A este valor contrastivo, Epiphânio Dias acrescenta ainda, adotando uma posição modalizada pelo verbo parecer, um valor causal, o que significaria que no lugar de que poderia surgir, por exemplo, a conjunção porque:

(3) «[…] maravilha / Feita de Deus, porque não de humanos braços»

Esta interpretação, sem outro contexto, já me parece mais difícil de sustentar, embora não me pareça impossível.

A hipótese aventada pelo consulente de uma equivalência entre «que não» e exceto aponta para a exclusão do grupo nominal introduzido pelo advérbio, como acontece em (4):

(4) «Todos foram à festa, exceto a Rita.»

Sem outro contexto, não parece que esse valor de exclusão seja trabalhado pelo grupo «que não».

Finalmente, não me parece que a palavra que em análise possa ser considerada um pronome relativo equivalente de «o qual», pelas seguintes razões:

(i) introduz um grupo nominal e não uma oração (com acontece com os pronomes relativos);

(ii) que tem comportamento de conjunção, pois introduz o segmento, surge à sua cabeça e não é compatível com outras conjunções:

(5) *«[…] maravilha / Feita de Deus, e que não de humanos braços»

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