Parece-nos que a consulente mistura duas categorias do texto narrativo na primeira questão que nos apresenta: a do narrador e a do discurso (modos de representação narrativa).
Relativamente ao narrador, este pode classificar-se tendo em conta duas perspectivas:
a) Quanto à presença ou lugar na acção ou diegese, segundo Gérard Genette em Discurso da Narrativa (1972), há vários tipos de narrador:
a.1) narrador autodiegético — narrador de 1.ª pessoa que narra uma acção que gira à roda de si próprio. Neste caso, o narrador acumula a categoria de personagem principal (ou protagonista), pois é «aquele que narra as suas próprias experiências como personagem central dessa história» (Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia (org.)). Tratar-se-á, então, de uma narrativa autobiográfica, de um romance autobiográfico.
a.2) narrador homodiegético — narrador de 1.ª ou de 3.ª pessoa «que, não sendo personagem principal da história, é ele que narra os acontecimentos a ela inerentes» (idem). Estando presente na acção, pode ser uma personagem secundária ou até um figurante.
a.3) Narrador heterodiegético — «aquele que, não fazendo parte da história, a narra» (idem).
b) Quanto à focalização, termo proposto por Gérard Genette, «também designado por “ponto de vista” (teóricos anglo-americanos), “foco narrativo” (em especial, no espaço brasileiro), “foco de narração” (C. Brooks e R. P. Warren), “visão” (J. Pouillon e T. Todorov, embora este também use “aspecto”), “ângulo visual” e “perspectiva narrativa”, consiste num dos modos de regulação da informação na ficção» (idem), revelando-se pela profundidade do seu olhar, razão pela qual o narrador pode surgir como:
b.1) narrador de focalização externa (ou “vision du dehors”, para Pouillon) — aquele que narra simplesmente aquilo que é observável, o que é visível, o exterior, revelando-se como «incapaz de certezas relativamente ao íntimo das personagens e à sequência dos factos» (idem);
b.2) narrador de focalização interna (ou de “vision avec”, para Pouillon), por assumir a percepção de uma personagem, de cujos pensamentos eventualmente dará conta» (idem). É o narrador que conhece o íntimo das personagens. O exemplo mais típico da “focalização interna” é o do monólogo interior, pelo qual acompanhamos a vida íntima da personagem em causa. Claro que a focalização interna de uma personagem poderá implicar, nessa mesma altura, a externa relativamente às outras;
b.3) narrador omnisciente — aquele que conhece tudo sobre as personagens e sobre o desenrolar da acção, evidenciando o domínio total do que se passou, do que se passa e do que se vai passar.
Relativamente ao discurso, o narrador pode construí-lo usando os vários modos para representar ou apresentar o enredo ou a diegese (modos de representação, ou de apresentação, narrativa), como a narração, a descrição, o monólogo e o diálogo.
Por sua vez, para reproduzir o diálogo (entre várias personagens) ou o monólogo (de uma personagem), o narrador pode optar por usar as várias formas de relato de discurso/enunciação: o discurso directo, o discurso indirecto, o discurso directo livre1 ou o discurso indirecto livre2.
Tendo em conta o que foi dito sobre o narrador e o discurso, verificamos que um narrador de 1.ª pessoa (como qualquer outro tipo de narrador) pode usar qualquer um dos modos de representação narrativa no seu discurso: a narração, a descrição, o diálogo e o monólogo, assim como poderá escolher o directo, o indirecto, o directo livre e o indirecto livre, sempre que quiser reproduzir a enunciação de alguma personagem.
Por se tratar de um narrador de 1.ª pessoa, poder-se-á cair no risco de se limitar a esse tipo de narrador o monólogo interior (quer sob a forma de discurso dire{#c|}to, como de discurso indirecto), porque isso corresponde a um discurso de análise introspectiva. Mas um narrador de 3.ª pessoa poderá, também, recriar um monólogo interior de uma qualquer personagem da sua narrativa, colocando na sua boca o que ele imaginou.
Quanto à segunda questão apresentada — «E o que são rubricas que servem de orientação para actores e director?» —, deduzimos que nos esteja a falar das particularidades do texto dramático, uma vez que se refere a «actores» e a «director».
Como nos fala de indicações («rubricas»?) «que servem de orientação para actores e director», pensamos que se trata das didascálias ou indicações cénicas, o chamado texto secundário do texto dramático — uma vez que não diz respeito às falas das personagens/dos actores —, pois «as didascálias, que são a voz directa do dramaturgo, […]a nível da representação, fornecem intruções àqueles que transformam o texto em espectáculo (encenadores, actores, cenógrafo...)» (Dicionário de Termos Literários, ob. cit.). Enquanto texto secundário, as didascálias «diferenciam-se visualmente do resto do texto por estarem escritas entre parêntesis ou por estarem impressas em itálico, ou de qualquer outra forma que marque bem que se trata de um texto à margem das falas das personagens. […] O estatuto das didascálias varia: por um lado, esse texto secundário, segundo a terminologia de Roman Ingarden, pode ser visto como um metatexto, no qual o dramaturgo fornece a explicação do texto principal (diálogos), limitando-se o encenador a “obedecer” às instruções do autor. Contudo, as didascálias podem ser entendidas como sugestões, pistas para a representação, e não a sua “chave”, e então o encenador pode ignorá-las ou optar por as usar como mais uma forma de questionar o texto, como mais um elemento interveniente na construção da sua própria representação/encenação da obra» (idem).
1 Discurso directo livre — «tipo de discurso, característico do texto narrativo contemporâneo, embora também possa ocorrer em textos dramáticos e líricos, no qual as palavras ou os pensamentos de uma personagem são reproduzidos como que imersos no discurso do narrador tal como aquela os formulou, sem que o narrador assinale com marcas formais — etiquetas nominais, verbos introdutores ou indicadores tipográficos como aspas e travessões — a sua mediação» (Dicionário Terminológico).
2 Neste modo de relato de discurso, a enunciação do emissor-relator funde-se com a enunciação do primeiro emissor; as fronteiras entre a voz de um e a voz de outro são dificilmente delimitáveis, ao contrário do que se verifica no discurso directo e no discurso indirecto (pelo recurso a marcações gráficas, morfossintácticas e deícticas, por exemplo), e daí que detectemos: a) activação da terceira pessoa gramatical (da enunciação do emissor-relator) na referenciação de estados de coisas perspectivados por uma primeira e segunda pessoa (da enunciação reportada); b) activação do imperfeito, mais-que-perfeito, futuro do pretérito (da enunciação do emissor-relator) em contiguidade com o “aqui” e “agora”, coordenadas espácio-temporais daqui derivadas, e presente, pretérito perfeito e futuro (da enunciação do primeiro emissor); c) construção de frase e léxico atribuíveis ao enunciador primeiro: exclamações; interjeições; marcadores discursivos (bem, ora, pois); deslocação dos constituintes de frase; fraseologia e expressões feitas; adjectivação valorativa; nomes qualitativos; intensificadores; advérbios de dúvida; locuções imprecisas, modalizadas; traços idiolectais, sociolectais; etc. (idem).