Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «para além» está correcta na frase «Como é a vossa vida para além do futebol?», ou só pode ser utilizada em frases do tipo «para além daquele monte», «para além do Tejo há...». Gostaria de saber a razão.

Obrigada pela atenção.

Resposta:

A locução «para além de» assume diversos significados:

a) pode ter um sentido espacial, significando o mesmo que «Para lá ou mais adiante do que em determinado ponto no espaço»; ou ainda «Do outro lado de». Exemplo: «Para além daqueles montes fica a Espanha.»

b) pode ter um sentido temporal:

«Para lá ou mais adiante do que um determinado ponto no tempo». Exemplo: «O espectáculo não deve durar para além da meia-noite.»

c) pode significar «Em quantidade, extensão, amplitude, valor ou número superior a». Exemplo: «Não gastes para além de 60 euros.»

d) pode, também, ter o sentido de «Em adição a alguma coisa, situação, actividade ou algo que é mencionado». É neste caso que é lícito perguntar: «Como é a vossa vida, para além do futebol?»

Nota: as definições entre aspas são citadas do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo.

Pergunta:

O vocábulo pescado-real é constituído por um nome e um adjectivo?

A palavra guarda-marinha também?

Resposta:

A fronteira entre os nomes e os adjectivos nem sempre é fácil de delinear e, normalmente, é o contexto que nos permite ter certezas. Neste caso, porém, temos nomes compostos cujo processo de formação pretendemos identificar: NOME + ADJECTIVO, ADJECTIVO + ADJECTIVO, NOME + NOME ou ADJECTIVO + NOME? 

Quase todas as palavras presentes nos compostos que a consulente refere podem ser nomes ou adjectivos: pescado, real e marinha tanto podem designar um ser ou objecto, como um atributo: pescado é nome quando significa «peixe», é adjectivo participial quando significa «que se pescou»; real é adjectivo quando significa «régio», nome quando significa «moeda»; marinha é adjectivo quando se refere a mar, é nome quando se refere à instituição. Guarda é a única palavra que, no composto, só funciona como substantivo.

Assim, se não é o contexto que nos permite determinar a classe gramatical dos termos em questão, devemos recorrer à origem e ao significado dos compostos. No caso de guarda-marinha, sendo este um posto dos oficiais da armada, portanto, uma graduação da marinha enquanto instituição, é lícito considerar que se trata da junção NOME + NOME. Trata-se, por assim dizer, e em termos muito simplistas, de um guarda da marinha.

Quanto a pescado-real, uma vez que se trata do nome de um peixe (também designado por pescada-real, pescada-legítima e pescada-cambucu), tudo indica que se trata da junção NOME (pescado = peixe) + ADJECTIVO (real como atributo, por se tratar de um peixe muito apreciado, em termos gastronómicos).

Pergunta:

Escrevo para pedir a vossa opinião sobre siglas e abreviaturas. Surgiram as questões abaixo assinaladas, e eu gostava de saber se estão correctas. Obrigado!

ONU, OVNI e SIADAP são siglas? V ou F?

BD, CNN, SOS e TV são abreviaturas? V ou F?

Resposta:

ONU, OVNI e SIADAP são acrónimos, porque se pronunciam relacionando as letras, como se estas constituíssem uma palavra normal. Para serem siglas, teriam de ser pronunciados letra a letra, por exemplo assim: «ó, éne, u» (ONU).

BD, CNN, SOS são siglas, porque se pronunciam soletrando os respectivos grafemas. Se SOS fosse um acrónimo, por exemplo, pronunciar-se-ia "sós" ou "sus".

Quanto a TV, trata-se de um caso especial. O Dicionário Houaiss classifica esta forma como abreviatura e tevê, lexicalização da soletração de TV, como redução. Adoptando outro critério, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa inclui TV entre as siglas.

Para classificar TV como uma abreviatura, deve-se observar que o conceito de abreviatura é bastante abrangente, porque integra reduções de palavras, como sr. ou Ex.ª. O modo como estas reduções são feitas não é uniforme: tanto se pode recorrer às iniciais de uma expressão, seguidas de ponto, como às primeiras letras de uma palavra, eventualmente seguidas de um ponto e de uma letra em expoente, como em  Ex.ª. Não parece ser este exactamente o caso de TV, que também não...

Pergunta:

Diz-se «Os milhares de mulheres foram encontradas», ou «Os milhares de mulheres foram encontrados»?

Obrigada.

Resposta:

Tanto faz. O particípio verbal pode concordar com o núcleo do sujeito «Os milhares», mas também é admissível que se estabeleça a concordância com a expressão partitiva «de mulheres», que faz parte do grupo de palavras que constituem o sujeito.

 

Pergunta:

Derivado do inglês to monetize (fazer dinheiro, criar receitas, transformar algo em lucro) vai aparecendo a palavra monetização. A minha dúvida não é tanto se é correcto usá-la ou se há ou não um bom substituto em português para este neologismo, mas se é legítimo «criá-lo», usá-lo, se temos essa liberdade?
Obrigado.

PS — Em alguns textos discutiu-se a palavra "costumização". Penso que ela não tem o sentido que lhe foi dada pelos vossos especialistas, mas sim «personalização (de conteúdos)».


Resposta:

Sou, por princípio, a favor da adaptação e da criação de termos para designar novas realidades, em detrimento da tradução literal, servil e tantas vezes absurda de palavras estrangeiras.

Como falantes, é inegável que temos essa liberdade a que o consulente se refere. Infelizmente, porém, o que não podemos fazer é subjugar a comunidade ling{#u|ü}ística inteira às opções que nos parecem mais válidas. Por outras palavras, mesmo que, por hipótese, algumas pessoas comecem a difundir o neologismo “dinheirização”, ou “moedificação”, “lucração”, enfim, uma alternativa a “monetização”, se esta última for a mais divulgada nos meios de comunicação de massas, a preferida pelos especialistas nas áreas em que o termo se usa e aquela que passa a ser reconhecida pela generalidade dos falantes, as alternativas serão pura e simplesmente ignoradas. E os seus adeptos terão de se render à “monetização”, sob pena de não serem compreendidos, se usarem outros termos para veicular o mesmo significado.

Quanto à palavra “costumização”, penso que a resposta "Costumize"/personalizar está de acordo com a sua opinião.