Maria Regina Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No trecho abaixo, gostaria de saber se estão corretos os seguintes tempos verbais: terá tido e acarretassem.

«Entre essa idade e os 4 meses é uma ótima fase para adquirir seu exemplar de pastor alemão; afinal ele poderá ser socializado desde bem novinho e também terá tido pouco tempo para vivenciar eventuais traumas que lhe acarretassem desvios temperamentais.»

Obrigada.

Resposta:

A forma verbal terá tido está adequadamente utilizada, mas a forma acarretassem não. Deverá ser substituída por acarretem.

O falante posiciona-se no presente («entre essa idade e os quatro meses é uma óptima fase»). Em relação a esse presente, ele considera que o pastor alemão terá tido pouco tempo para vivenciar traumas. Utiliza aqui o futuro composto (terá tido) para exprimir a probabilidade, a suposição sobre factos passados, factos esses (eventuais traumas) a respeito dos quais ele só pode enunciar uma acção mediante um verbo no presente do conjuntivo (acarretem), que é um tempo que exprime uma acção eventual ou incerta no presente ou no futuro. Em concordância com o futuro composto (designado na terminologia brasileira de futuro do presente composto), só pode ocorrer uma forma do presente e não do pretérito.

Pergunta:

Sou programador e há pouco tempo frequentei um curso para programadores onde os monitores utilizaram imensas vezes a palavra "instanciação". Esta palavra levantou-me algumas dúvidas que a consulta dos dicionários não resolveu.

Na Programação Orientada por Objectos manipulam-se objectos abstractos que correspondem a conceitos abstractos ou concretos. Esses objectos têm um tempo de vida limitado e curto (por vezes menos de 1 segundo), portanto existem por um "instante". Ao acto de criar estes objectos pode-se dar o nome de "instanciação"?

Resposta:

O termo “instanciação” aparece registado nos dicionários de informática. Vou referir-lhe dois deles.

No Dicionário de Termos Informáticos, do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), 1993, é referido o seguinte significado: processo que consiste em substituir uma variável, capaz de representar os objectos de um dado conjunto, por um objecto desse conjunto. Através deste processo, cria-se um exemplo particular (instância) de um conceito abstracto. A instância (objecto que se adequa a uma descrição normalizada num certo nível) possui as particularidades gerais de um objecto abstracto. Estas propriedades herdadas são combinadas com as propriedades inerentes.
No Dicionário Breve da Internet e Redes, de Luís de Campos e Carlos Sanches, 1999, aparece registado o termo inglês “instancing”, traduzido por “instanciação”, que, em VRML (“Virtual Reallity Markup Language”), é a operação que consiste em dar um nome a um nó já definido no grafo de cena, com a finalidade de criar vários exemplares desse nó. É habitual, em VRML, usar cópias ou instâncias da mesma forma, o que se faz com a função USE, a qual pede ao utilizador para fazer uso de um nó predefinido. A instanciação é uma das características de base da programação por objectos. Também se aplica à JAVA.

No Dicionário Aurélio Século XXI, 1999, o termo “instância” aparece com estas duas acepções relativas à informática: cada um dos objectos criados durante a execução de um programa; cada uma das execuções de um programa, realizadas durante uma mesma secção do sistema operacional.

As palavras “instância” e “instanciação” neste contexto não têm, pois, que ver directamente com “instante”(tempo muito curto), mas com a palavra inglesa “instance” (exemplo, circunstância, caso), presente na expressão “for instance”, que significa “por exemplo...

Pergunta:

Nas frases:

1 - Seja brincando, seja trabalhando, eles sempre estão contentes.
2 - Seja aqui, seja ali, eles acabarão nos encontrando.
3 - Sejam seus pais, sejam meus pais os donos do imóvel, tanto faz.

Está correta a concordância do seja...seja?

Ele fica sempre no singular , uma vez que é conjunção alternativa? Ou, quando acompanhado de palavra no plural, varia, como no 3.º exemplo?

Resposta:

A reiteração anafórica "seja... seja...", apesar de apelidada na gramática tradicional de conjunção coordenativa disjuntiva (alternativa ou distributiva, se quiser utilizar expressões mais em voga actualmente), não deixa de ser constituída por formas verbais. Elas concordam com o sujeito. Deverá, pois, flexioná-las. Aliás, essa forma até pode variar em tempo. Na Sintaxe Histórica Portuguesa, Augusto Epifânio da Silva Dias apresenta este exemplo: "tudo quanto sentia, fossem tristezas, fossem alegrias..."

Pergunta:

É verdade que, infelizmente, o sotaque lisboeta tende a prevalecer sobre os outros sotaques. Desta forma muitas das vogais que de certa forma já são mudas ainda ficam mais mudas ao ponto do próprio nome da cidade 'Lisboa' parecer mais um 'L'sboa'. Desagrada-me ver que todos parecem estar de acordo em relação à pronúncia de 'Filipe', que eu sempre ouvi assim pronunciado, mesmo pela minha bisavó, mulher extremamente culta, que dizem ser 'Felipe'. Acho mesmo muito mais feia esta segunda forma, e algo pretensiosa. Qualquer dia, se a tendência continuar , os brasileiros, que, têm a mesma língua chegam a 'L'sboa', ouvem um 'B'm d'a, com'stá?' e não reconhecem a sua própria língua. Eu por mim, vou continuar a dizer 'Filipe' , 'ministro' , etc. pronunciando bem os dois 'ii'. Não acho que seja pronúncia afectada. Da mesma forma, os lisboetas dizem 'Rio Douro', 'Riu Dôro', e ninguém lhes diz nada. Que eu saiba 'Rio' é uma palavra dissilábica Ri-o, e não devia ser pronunciada como em 'Ele riu', tal como a má pronunciação de todos os ditongos 'ou' que soam mais como 'ô'...

Resposta:

Não é de forma nenhuma consensual que a pronúncia de Lisboa seja considerada a norma.

O gramático Jerónimo Soares Barbosa, na sua Gramática Filosófica da Língua Portuguesa (1881), escreveu o seguinte: “entre as diferentes pronunciações de que usa qualquer nação nas suas diferentes províncias, não se pode negar que a da corte e território em que a mesma se acha seja preferível às mais, e a que lhes deva servir de regra. Os gregos e os romanos assim o julgavam; aqueles a respeito de Atenas e estes a respeito de Roma; e nós o devemos igualmente julgar a respeito de Lisboa, há muitos anos corte de nossos reis e centro político de toda a nação.” Estas palavras mostram que no fim do século XIX a fala de Lisboa não era considerada a da norma e havia quem o desejasse, pelo prestígio da capital.

Estas palavras não alteraram a realidade, e a boa norma prosódica sempre foi considerada a de Coimbra (a lusa Atenas), berço da Academia, difusora, durante séculos, da norma linguística. Efectivamente, repare-se que se pode dizer que esta ou aquela particularidade é característica do falar de Lisboa ou do Porto, ou do Algarve, etc., sempre por referência à norma de Coimbra.

No século em que estamos, século XXI, não me parece que o argumento da capital, que até ao momento nunca teve peso a nível linguístico e que tende a perdê-lo a nível político e social, possa ser invocado para conferir prestígio a uma forma de falar em detrimento de outras.

Assim, caro consulente, claro que a pronúncia de “coâlho” e “riu” por “coelho” e “rio” vai ser sempre considerada como uma particularidade da fala lisboeta, e não a norma.

No entanto, a referência que faz ao enfraquecimento das vogais átonas pré-tónicas, essa não é uma particularidade local. Trata-se de um fenómeno caracter...

Pergunta:

Li algures que o nome 'Freixo de Espada à Cinta' era um erro, e que o verdadeiro nome desta localidade era 'Freixo de Espada-Cinta', cinta como em cingida e que o 'à' foi acrescentado por erro, é verdade?

Resposta:

Na obra Portugal – Dicionário Histórico, Corográfico, Biográfico, Bibliográfico, Heráldico, Numismático e Artístico (1904 – 1915), apresentam-se duas explicações para a origem do nome desta vila transmontana.

Refere-se aí que João de Barros, nas suas Antiguidades de Entre Douro e Minho, lhe dá por fundador um fidalgo de apelido Feijão, primo de S. Rosendo, fidalgo esse que morreu em 977 e que tinha por armas uns freixos e uma espada, tendo estes dado o nome e as armas à vila.

Por outro lado, segundo a tradição, um capitão godo, de nome Espadacinta, chegando àquele sítio, cansado de uma batalha e deitando-se à sombra de um grande freixo que ali havia, deu à árvore o nome de freixo de espada à cinta, o qual passou à povoação que ali se começou a fundar pouco depois, povoação essa que, em memória desse facto, tomou por brasão o freixo e a espada em campo de púrpura. No início do século XVIII, ainda se via junto da igreja matriz da vila um freixo colossal, cercado de assentos de pedra, que merecia grande estima aos habitantes, por o considerarem o mesmo freixo da lenda.

Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, apresenta-se uma terceira explicação para o nome da vila, referindo-se que o rei D. Dinis, que fez edificar o castelo (em 1310), honrou a vila com a sua presença e aí pendurou a sua espada num freixo, que ainda hoje se conserva, por memória, vindo daí o nome da vila. Na obra Portugal Passo a Passo: Trás-os-Montes e Alto Douro, acrescenta-se que a corte estava junto do rei observando um majestoso pôr-do-sol (majestoso por razões óbvias) e, antes que partissem de novo, um dos imaginativos trovadores que acompanhavam sempre o nosso rei-poeta lembrou que o freixo, a contra-luz, tinha uma forma singular:

“Parece mesmo um freixo de espada à cinta!”