Maria Eugénia Alves - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Maria Eugénia Alves
Maria Eugénia Alves
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Professora portuguesa, licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com tese de mestrado sobre Eugénio de Andrade, na Universidade de Toulouse; classificadora das provas de exame nacional de Português, no Ensino Secundário. 

 
Textos publicados pela autora
«<i>I know not what tomorrow will bring</i>»*
A curiosa e inquietante última frase escrita por Fernando Pessoa (Lisboa, 13/06/1888 — Lisboa, 30/11/1935)

A 19 de novembro de 1935, Fernando Pessoa, já muito debilitado, escreve o seu último poema na língua materna: «Há doenças piores que as doenças.» Mas é em inglês que redige a última frase, dez dias depois. O que terá levado a fazê-lo é o que permanecerá irrespondível e a causar alguma estranheza – como escreve neste texto a professora Maria Eugénia Alves, assinalando os 82 anos do falecimento do maior poeta português do século XX.

 

* Em português: «Não sei o que o amanhã trará

Pergunta:

Gostava de saber/ confirmar se a expressão «estar com fezes», com o sentido de «estar com preocupações», é característica da zona Centro (região à volta de Leiria). Em caso afirmativo, pedia que me indicassem a fonte de informação.

Obrigada.

Resposta:

     Na pesquisa efetuada acerca da expressão, confirmámos que é usada apenas em todo o Alentejo, no Algarve e nos Açores.

     O Dicionário Infopédia restringe-a a um regionalismo do Alentejo.

     Assim, encontramos:

1. «fezes = ralações, torturas, preocupações, cuidados (Alto e Baixo Alentejo)» in Dicionário de Falares do Alentejo, Vitor Fernando Barros, Lourivaldo Martins Guerreiro;

2. «fezes = irritação, ralações, arrelia. Exemplo: Isto dá-me umas fezes; ele está com as fezes = está arreliado, enervado; já me meteram em fezes = em ralações, complicações», in Dicionário do Falar Algarvio, Eduardo Brazão Gonçalves;  

3. «fezes = arrelias, impaciência, usada no Alentejo com sentido idêntico. Em S. Jorge diz o provérbio: 'Não há oiro sem fezes'», in Dicionário de Falares dos Açores, J. M. Soares de Barcelos.

      Para reiterar o que foi dito, pode ler-se<...

Quando teremos direito a uma “Sexta-feira Negra”?

«(…) Só penso como estas expressões serão entendidas por uma boa fatia da sociedade portuguesa, envelhecida, analfabeta, muitas vezes, aldeãos esquecidos numa província cada vez mais longínqua das grandes cidades litorais onde a “civilização” acontece com halloweens, blackFridays/weeks, marginalizando, criando fossos, insistindo num progresso que ignora continuamente a sua língua materna e promove um país a duas velocidades. (…)»

Pergunta:

Quantos fonemas têm as palavras bebê (criança recém-nascida) e bebe (do verbo beber)?

Obrigado.

Resposta:

O fonema refere a unidade mínima do sistema fonológico, que pode também designar-se como som da fala. 

As duas palavras, bebê (Brasil)/ bebé (Portugal) e bebe têm quatro fonemas: uma vez que o fonema é o som da fala, temos aqui quatro sons: /b/; /e/; /b/; /e/ ou /ɛ/ ou /i/ ou /ɨ/ 

1. bebê no Brasil: consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral subtó(ô)nica¹ /e/; consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral tónica /e/ 

    bebé em Portugal: consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral subtó(ô)nica /ɛ/; consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral tónica /ɛ/ 

2. bebe no Brasil: consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral tónica /ɛ/; consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral átona /i/ 

    bebe em Portugal: consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral tónica /ɛ/; consoante oclusiva bilabial /b/; vogal oral átona /ɨ/ 

 

1 Alguns autores (veja-se BecharaCegalla e Luft) citam um terceiro tipo de vogal quanto à intensidade, as subtó(ô)nicas:«além da tônica, uma vogal de grande intensidade, a qual recebe o nome de vogal subtônica.», Moderna Gramática Portuguesa, Ivanildo Bechara.

Fonte:

Pergunta:

Gostaria de saber se o seguinte verso da Ode Triunfal, do heterónimo Álvaro de Campos, contém uma hipálage: «À dolorosa luz das grandes lâmpadas», o adjetivo "dolorosa" é atribuído a quem? A luz ou a lâmpada são os elementos que, semanticamente, não aceitam esse sentimento. Poderá recair sobre o sujeito poético, mas não será um traço dele. Poderá então subentender-se que é a escrita que é dolorosa? «À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo».

Obrigada.

Resposta:

Álvaro de Campos da Ode Triunfal é, como sabe, o futurista, aquele que se entusiasma com o frenesim da modernidade, com o progresso inovador, com a velocidade caótica de uma nova (des)ordem social, que vive o espasmo da vertigem, intensamente.

A Ode é, para ele, a maneira mais fácil de cantar este ritmo desenfreado, a amálgama de sensações indistintas, o delírio caótico de uma sociedade em mudança, que o leva num arrebatamento delirante. 

Assim, esse primeiro verso arranca com uma força inusitada que incomoda o leitor quer pela estranheza do uso da palavra de um quotidiano banal, quer pelo conteúdo do tema, expondo desde logo um "eu" febril por submissão à sociedade da tecnologia indomável e cruel: a escrita é consequência da febre «Tenho febre e escrevo», isto é, escrevo porque tenho febre, provocada pela luz das grandes lâmpadas das fábricas.

É dolorosa a maneira como escreve, experimentando a sensação de sofrimento causada pela luz (aqui como exemplo da sociedade da máquina).

Deste ponto de vista, podemos dizer que há aqui uma hipálage, uma vez que a escrita é uma sua característica, é um traço dele, pois é por ela que ele se define desde logo no primeiro verso, a escrita é a sua maneira de estar no mundo e de dar conta dele aos outros.