Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
17K

Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora
Semântica: uma estrela invulgar no espaço político
A relevância do significado numa comunicação eficaz

«Preocupar-se com o uso acertado das palavras é também ter cuidado com o sentido que veiculam, uma vez que este constitui uma parte importante de qualquer ato comunicativo. (...) Em circunstâncias relativas às relações de diferentes estados que muitas vezes estão em conflito, defende-se um cuidado nas palavras usadas, uma vez que a interpretação errada de um termo é o suficiente para agravar a situação.» 

Texto da consultora do Ciberdúvidas Inês Gama a propósito das declarações do secretário-geral das Nações UnidasAntónio Guterres, no passado dia 24 de outubro.

Pergunta:

Qual a forma correta?

«Ele subiu dois lanços de escadas.»

ou

«Ele subiu dois lanços de escada.»

ou

«Ele subiu dois lanços das escadas.»

Resposta:

As três frases apresentadas pela consulente estão corretas e são aceites em português.

Entre as frases «Ele subiu dois lanços de escadas» e «Ele subiu dois lanços de escada» a diferença prende-se com o uso da palavra escada: na primeira frase esta surge no singular e na segunda no plural. A utilização do termo escada com a aceção «conjunto de degraus» é muitas vezes feita de modo indistinto no singular e plural, sendo que a sua ocorrência no singular e no plural nem sempre é previsível.

A maioria dos dicionários de língua portuguesa não reconhece este uso indistinto, preferindo a utilização da palavra singular em situações em que se refere apenas a um único grupo de degraus, sendo a palavra plural relegada para os contextos em que se refere a vários grupos. Contudo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa inclui, na sua versão em linha, a expressão «lanço de escadas», dando, portanto, conta da utilização desta palavra no plural como referência a um único conjunto de degraus. Já o dicionário Infopédia apenas aceita expressões como «lanço de escada», apresentado como exemplo a frase: «Subiu a correr os sete lanços de escada». Isto indica que, se, por um lado, se pretende referir que os lanços pertencem a uma única escada, então, dever-se-á usar «dois lanços de escada»; se, por outro lado, se quer mencionar dois lanços que pertencem a mais do que uma escada, então, poder-se-á usar «dois lanços de escadas».

Todavia, uma pesquisa no corpus do Português de Mark Davies, na secção da atualidade, indica que se verifica uma tendência nos usos para a utilização da expre...

«Aquele livro, o António qué-lo» ou «Aquele livro, o António quere-o»?
As formas dos pronomes clíticos com o verbo querer

Apontamento da consultora Inês Gama sobre as formas dos pronomes clíticos acusativos com o verbo querer, incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 29 de outubro de 2023.

Pergunta:

Qual é a diferença da estrutura de superfície e estrutura profunda nas orações adjetivas? Podem dar exemplos?

Obrigado

Resposta:

Segundo o modelo generativista, todas as frases possuem, no mínimo, duas estruturas: a estrutura profunda e a estrutura superficial. A estrutura profunda das frases corresponde à componente semântica, isto é, a toda a informação relativa ao significado. Já a estrutura superficial consiste nas componentes fonológicas e sintáticas.

No caso das orações subordinadas adjetivas, poder-se-á considerar que a sua estrutura profunda está relacionada com a informação veiculada por estas e que tem a função de identificar a parte ou a entidade precisa denotada pelo antecedente, isto é, atribuir-lhe um valor semântico de especificidade1.

Já a estrutura superficial destas construções relaciona-se com a função sintática desempenhada. Por exemplo, na frase (1), a estrutura profunda da oração subordinada adjetiva (segmento sublinhado) define as propriedades que permitem identificar o subconjunto a que o antecedente pertence, ou seja, de todas as crianças do mundo a frase refere-se apenas àquelas que brincam, ao passo que a estrutura superficial consiste na função sintática de modificador restritivo do nome que é desempenhada pela oração.

(1)    As crianças que brincam são mais felizes.

Veja-se ainda o exemplo da frase (2). Nesta frase, a estrutura profunda da oração adjetiva (segmento entre vírgulas) contribui com informação adicional sobre o antecedente, ou seja, completa a frase com informação sobre o lugar de onde vem o aluno, já a estrutura superficial traduz-se na função sintática de modificador apositivo do nome e que é desempenhada pela oração subordinada adjetiva da frase.

(2)    O aluno, que veio de Coimbra, teve a melhor nota da escola.

 

...

Pergunta:

Em geral, nas aulas de portugês, se quisermos referir-nos a uma mudança, usamos o verbo ficar ou outras vezes o verbo tornar-se.

Fazendo uma pesquisa, encontrei os seguintes equivalentes dos verbos mencionados num dicionário:

«converter-se a (religião) ou em, transformar-se em, ficar, pôr-se com adjetivo, fazer-se, tornar-se, mudar, mudar-se, mudar de, alterar, trocar e cambiar (cujo uso se restringe a dinheiro), chegar a e vir a».

Poderiam ajudar-me quanto à diferença entre estas formas? Podemos, por exemplo, dizer (como em espanhol) : «puseram-se inquietos» ou «ele fez-se rico»?

Obrigado pela sua ajuda e dedicação

Resposta:

Os verbos ficar e tornar-se, no seu uso copulativo, são semanticamente próximos, uma vez que partilham o sentido de mudança de estado. Observe-se, por exemplo, que a frase (1) descreve a mesma situação da frase (2), isto é, a situação de alguém que deixou de ter pouco dinheiro e passou a ter muito.

(1)  Ele fez-se rico.

(2)  Ele tornou-se rico.

Todavia, o verbo tornar-se introduz uma ideia de conversão ou de transformação que ficar não tem. Este verbo combina-se preferencialmente com predicados de natureza estável e não permanente, veiculando um valor de transformação. Por outro lado, ao contrário de ficar, o verbo tornar-se quando combinado com constituintes predicativos episódicos gera enunciados pouco aceitáveis. Note-se que, enquanto a frase (3) não apresenta qualquer problema de aceitabilidade, a frase (4) já é mais dúbia.

(3)  Eles ficaram inquietos.

(4)  ? Eles tornaram-se inquietos.

No que concerne ao verbo ficar, a sua semântica é um pouco mais complexa de perceber, na medida em que, no português europeu, de acordo com Rute Rebouças em «Sobre a semântica do verbo ficar em construções progressivas com adjetivos e particípio», este verbo é capaz de, por um lado, se comportar como um verbo principal1, assumindo o significado básico de permanecer num determinado lugar, como em (5); por outro lado, pode apresentar-se como um verbo copulativo, indicando o resultado de uma mudança de estado ou de evento, como em (6); ou como auxiliar passivo para indicar um estado resultativo ou conseque...