Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora
A Pronúncia do Norte
Entre a música, o sotaque e a identidade

A propósito dos 45 anos de carreira dos GNR, a emblemática canção Pronúncia do Norte volta a ganhar destaque através de uma homenagem promovida pela Rádio Comercial, reunindo nomes sonantes da música portuguesa. Mais do que um hino à região do Porto e arredores, esta música celebra a diversidade linguística do português europeu, dando voz a traços fonéticos típicos do Norte de Portugal, e, neste sentido, a consultora Inês Gama dedica um apontamento à pronúncia típica do norte de Portugal.

<i>Autarca</i>, <i>autarquia</i> e <i>autárquicas</i>
Uma reflexão sobre palavras do poder local

Na sequência das eleições autárquicas de 12 de outubro, a consultora Inês Gama apresenta um pequeno apontamento sobre as palavras autarcaautarquia e autárquico. Esta palavras, embora próximas na forma, revelam origens, significados e usos distintos, especialmente no contexto do poder local.

Pergunta:

Entro em contato para sanar uma dúvida que me acompanha há algum tempo. Trata-se da locução «com que».

A construção completa é a seguinte:

«Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara, contendo as lições de um quase nada daquela língua que ele aprendera quando seminarista.» (Extraído do prefácio da tradução de Irineu Bicudo de Os Elementos de Euclides.)

Para a análise, apenas a primeira oração é importante:

«Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara.»

Minha pergunta é: o que significa exatamente esse «com que» nesse contexto? Como parafrasear essa oração? Seria esse um caso de anástrofe – isto é, uma passagem de «Lembro que, com sentimento de encanto, folheava o caderno que um vizinho me emprestara» para «Lembro com que sentimento de encanto folheava o caderno que um vizinho me emprestara»?

Tenho, porém, fortes dúvidas, porque em minhas pesquisas encontrei outro uso de «com que» que não parece decorrer de uma inversão:

«Mas, com que sentimento inesperado fui surpreendido pela visão quando cheguei diante dela! Uma impressão total e grandiosa preencheu a minha alma, impressão que eu certamente pude saborear e desfrutar, mas não conhecer e esclarecer, porque consistia em milhares de particularidades harmoniosas entre si.”* (Excerto de Escritos sobre Arte, Johann Wolfgang Goethe, tradução de Marco Aurélio Werle, 2008, 2.ª edição.)

Caso seja possível, agradeço se puderem indicar referências sobre essa locução «com que» e seu funcionamento sintático.

Resposta:

Na frase «Lembro com que sentimentos de encanto folheava o caderno», pode surgir alguma dúvida quanto à função da expressão «com que». Embora, à primeira vista, se possa pensar tratar-se de uma simples inversão sintática (isto é, uma anástrofe) – como em «Lembro que, com sentimentos de encanto, folheava o caderno» –, a estrutura revela-se mais complexa e merece uma análise detalhada.

Antes de mais, importa esclarecer que "com que" não constitui uma locução, uma vez que não forma uma unidade lexical. Trata-se da preposição com seguida do constituinte com valor exclamativo que, formando uma unidade que introduz uma oração subordinada.

No caso em análise, a expressão «com que» introduz uma oração subordinada com valor exclamativo. Segundo Pilar BarbosaPedro Santos e Rita Veloso, (Gramática do Português Fundação Calouste Gulbenkian, págs. 2576 e 2577), este tipo de oração pode ser selecionado por um verbo principal – neste caso, lembrar – sendo que toda a proposição constitui o foco da exclamação. Assim, a oração introduzida por «com que» completa o sentido do verbo, evocando não apenas o ato de folhear o caderno, mas também os sentimentos que acompanharam essa ação, ou seja, expressa a recordação da vivência afetiva associada ao gesto. Quer isto dize...

Quando o sentido tradicional de <i>moderado</i><br> deixa de o ser
O valor semântico no contexto das políticas de habitação

A propósito da substituição, por parte do governo português, do termo «renda acessível» por «renda moderada», a consultora Inês Gama, neste apontamento, analisa o valor semântico e discursivo do adjetivo moderado. Neste texto, é explorado a sua etimologia, o uso comum em português e a dissonância entre o significado tradicional e a aplicação política recente. 

Pergunta:

No idioma espanhol se usa perro cachorro como «filhote de mamífero».

Quando e por que foi que o idioma português trocou para sinônimo equivalente, correspondente da palavra cão?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

A questão proposta mistura, de forma não muito rigorosa, fenómenos distintos da evolução lexical do português e do espanhol. Não se trata de o português ter “trocado” um termo por influência do espanhol ou vice-versa, mas sim de cada língua ter desenvolvido, de forma autónoma, formas populares que vieram a substituir, no uso corrente, os vocábulos herdados diretamente do latim clássico.

Em português europeu, o termo cão, proveniente do latim canis, é comummente utilizado. Já a palavra cachorro, por outro lado, também tem origem antiga, com testemunhos desde a Idade Média, sendo referente originalmente ao filhote de cão ou, em sentido mais amplo, de outros animais mamíferos. Com o tempo, particularmente no português do Brasil, o vocábulo generalizou-se para designar o animal adulto, tornando-se a forma predominante no uso quotidiano. Este fenómeno pode dever-se a mecanismos linguísticos comuns, como a tendência para o uso de formas mais afetivas ou eufemísticas no convívio familiar e popular.

Já no espanhol, o vocábulo corrente para cão é perro, cuja etimologia, segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola, é incerta. De acordo com Diccionario crítico etimológico castellano e hispânico, trata-se possivelmente de uma forma originada por onomatopeia — como prrr ou brrr — usada por pastores para chamar ou incitar os cães no trabalho com o gado. Antes da consolidação de perro, o espanhol usava can, forma culta derivada do latim canis, que ainda ...