Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Regra geral, tenho poucas dúvidas quanto ao português escrito; acredito, porém, que essa segurança advém do facto de ser uma leitora compulsiva, e não de ser especialmente versada nas questões menos comuns da gramática da nossa língua (de gramática, só recordo as distantes lições da instrução primária e do liceu, e uma leitura, também já distante no tempo, da «Nova gramática do Português contemporâneo»*, de Celso Cunha e Lindley Cintra), pelo que, frequentemente, me debato entre a certeza da formulação correta e a falta de base teórica para defender a minha posição. E quando não sei mesmo (nem sequer intuo), recorro ao Ciberdúvidas, claro.

Encontro-me presentemente a rever vários textos [...] e deparei com uma frase que me soa mesmo mal; mas como as alterações que proponho têm de ser discutidas com os autores, gostaria, caso tenha razão, que me proporcionassem o tal fundamento teórico, para poder apresentá-lo se aqueles não aceitarem a correção. A frase é a seguinte:

«Distinguir a diferença entre a perspetiva focal e periférica na relação com si próprio, com o outro, com os objetos e com o espaço.»

Eu sugiro «[...] na relação consigo próprio [...]». Tenho razão?

Obrigada e parabéns pelo vosso trabalho.

Resposta:

A expressão correta é «consigo próprio».

A forma consigo é resultado da contração da preposição «com» com o pronome pessoal da terceira pessoa na forma oblíqua «si». Regra geral, quando a preposição com coocorre com o pronome pessoal oblíquo, tem lugar uma contração que assume as seguintes formas consoante a pessoa: comigo (1.ª pessoa do singular); contigo (2.ª pessoa do singular); consigo (3.ª pessoa do singular); connosco (1.ª pessoa do plural) e convosco (3.ª pessoa do singular).

Na Moderna Gramática do PortuguêsEvanildo Bechara adverte que as formas com mim, com ti, com si, com nós, com vós não são aceites em português. Todavia, este gramático alerta ainda: «empregam-se, entretanto, com nós e com vós, ao lado de conosco [connosco em PE1] e convosco, quando estes pronomes tônicos vêm seguidos ou precedidos de mesmos, próprios, todos, outros, ambos, numeral2 ou oração adjetiva, a fim de evidenciar o antecedente» (pág. 140). Por isso, a expressão «com si próprio» não é correta em português. Podemos, no ent...

Pergunta:

Quantos deíticos há na frase «A aventura devolve-nos à imensidão do aberto.»?

Resposta:

Na frase «A aventura devolve-nos à imensidão do aberto» pode-se considerar que há um dêitico pessoal, que corresponde ao pronome pessoal na forma dativa nos. Pode-se também considerar o dêitico temporal presente na forma verbal devolve no presente do indicativo.

Os dêiticos são expressões linguísticas cuja função é fazer referência ao momento da enunciação, à situação do enunciado ou aos interlocutores. Segundo Maria Lobo na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian)1: «A referência de uma expressão dêitica não tem um valor fixo, mas sim um valor referencial variável de acordo com os parâmetros da enunciação. Por exemplo, os advérbios (…) e os pronomes pessoais da primeira e segunda pessoa (…) são dêiticos, uma vez que, para identificarmos o seu referente, temos de conhecer o contexto enunciativo» (pág. 2178). Assim, na frase apresentada pela consulente, o pronome nos pode ser considerado um dêitico, visto que faz referência ao locutor da informação veiculada pela frase.

De acordo com o Dicionário Terminológico, os dêiticos «assinalam o sujeito enunciador, o sujeito a quem se dirige o ato enunciativo, o tempo e o espaço da enunciação; apontam para objetos, entidades e processos constitutivos do contexto situacional; contribuem ainda para a referenciação exofórica de outros signos atualizados no discurso». Deste modo, o tempo verbal em que o verbo devolver se encontra permite localizar a situação descrita pela frase num determinado período de tempo que se sobrepõe ao da enunciação. Por isso, o tempo verbal do ve...

A classe de palavras de <i>que</i>
O que de «comprei uma maçã que estava podre»

A classe de palavras a que o vocábulo que pertence na frase «Comprei uma maçã que estava podre» é o tema abordado pela consultora Inês Gama no programa Páginas de Português, da Antena 2.

Pergunta:

Na passagem «Como um friso – de pessoas, lugares e acontecimentos, quantas vezes maiores que a própria vida –, que poderia muito bem ser cinema se, por acaso um dia, a ele fosse adaptado», agradecia que me precisassem, no caso de ter de transcrever, o antecedente do pronome relativo que presente em «que poderia muito bem ser cinema»: «um friso» ou «friso»?

Antecipadamente grata!

Resposta:

A frase apresentada pela consulente é do artigo de Maria João Pinto, no Diário de Notícias, intitulado «Fernão Lopes, cronista para todos os tempos». Na oração «que poderia muito bem ser cinema» o antecedente do pronome relativo que é o sintagma nominal «um friso».

Na oração mencionada o pronome relativo que desempenha a função sintática de sujeito. Para além de assegurar formalmente a relação de subordinação, o pronome relativo que também retoma dentro da oração o grupo nominal modificado, que, neste caso, corresponde a «um friso».

A oração «que poderia muito bem ser cinema» é uma relativa de nome apositiva e, como tal, segundo Rita Veloso, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian)1, o antecedente das orações relativas apositivas é um sintagma nominal completo (neste caso, «um friso»). Este tipo de orações funciona semanticamente como um caraterizador de todo o sintagma nominal precedente, veiculando informação nova sobre ele, mas não contribuindo para o seu valor referencial.

 

1. Veloso, R. (2013), Subordinação relativa. In Raposo et al. (2013). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 20610-2136.

Pergunta:

É possível desenvolver um algoritmo – sequência de instruções – que tendo como input um texto em português consiga, como output, indicar se esse texto é em português do Brasil ou de Portugal?

Obrigado

Resposta:

Existem diferenças assinaláveis entre o português europeu (PE) e o português do Brasil (PB) que podem ser facilmente identificáveis por um algoritmo. Todavia, até à data, desconhece-se a existência de um programa específico capaz de fazê-lo.

Os dados de ambas as variedades evidenciam que existem diferenças ao nível da sintaxe, da morfologia, da fonética e fonologia, da semântica e do léxico, que aplicadas a um conjunto de operações e sequências informáticas, poderão permitir desenvolver um algoritmo capaz de distinguir ambas as variedades pelo menos nos seus traços mais gerais e mais marcados. 

Tomando como referência os programas informáticos usados na tradução e disponíveis na internet, por exemplo Google Tradutor, Deepl Translate e o tradutor do Cambridge Dicionary, observa-se que ainda não existe uma distinção marcada entre o PE e o PB. Contudo, no caso de inglês, alguns destes programas já fazem a distinção entre o inglês americano e o inglês britânico, o que indica que já existem algoritmos capazes de distinguir diferentes variedades de uma língua, mas que ainda não foram aplicados ao português.