Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora
As palavras de 2023 no Ciberdúvidas

As palavras que, ao longo do ano de 2023, foram usadas para referir os momentos mais marcantes são o tema deste texto, da consultora Inês Gama, que faz um levantamento dos vocábulos que o Ciberdúvidas identificou e analisou ao longo dos últimos 12 meses.

Pergunta:

Primeiro, muito obrigado pelo apoio e atenção de sempre. Serei eternamente grato pela solicitude.

Minha dúvida é sobre um possível significado do verbo ocorrer para o qual não encontrei descrição nos dicionários consultados. Pois bem, lendo um álbum produzido na década de 80, sobre animais da Mata Atlântica, volta e meia, me deparo com o referido verbo indicando o habitat de determinado animal, como no fragmento que transcrevo abaixo:

«[...] Esta ave ocorre desde a Bahia, passando por Minas Gerais e descendo até o Rio Grande do Sul […].»

Acredito que tenha uma acepção quase de «viver, habitar», pelo contexto, porém não vi registro nas entradas deste verbo nas fontes consultadas.

Daí, por gentileza, peço ajuda. É de conhecimento de vocês se esse verbo é utilizado com proximidade destes significados que presumi?

Resposta:

Primeiro, agradecemos as gentis palavras, que muito nos satisfazem.

Na frase indicada, o verbo ocorrer tem o sentido de «ter lugar, existir», ou seja, pretende indicar que a ave pode existir numa área cuja extensão tem início na Bahia, passa por Minas Gerais e termina no Rio Grande do Sul. Portanto, está correto o seu uso com a aceção de «viver, habitar determinada região».

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (DLPACL), um dos possíveis sentidos do verbo ocorrer é «existir ou aparecer num lugar, num contexto, numa situação», como por exemplo em «Esta doença ocorre sobretudo nos grupos de maior risco». Contudo, assinala-se que dos dicionários consultados para a elaboração desta resposta (cf. Infopédia, PriberamMichaelis e Aulete), apenas o DLPACL apresenta esta aceção para o verbo ocorrer.

Portanto, tendo em consideração o significado de ocorrer indicado anteriormente, poder-se-á considerar que na frase «Esta ave ocorre desde a Bahia, passando por Minas Gerais e descendo até ao Rio Grande do Sul» a informação veiculada é de que a ave em questão habita a área compreendida entre estes estados, uma vez que é nessa área em que se pode encontrá-...

Pergunta:

Pode dizer-se que uma conjunção como, por exemplo, embora seleciona o conjuntivo ou o verbo selecionar, nesse sentido, só se usa relativamente a verbos, por exemplo, o verbo obedecer seleciona complemento indireto?

Muito obrigado!

Resposta:

Geralmente, em português, usa-se o conjuntivo (subjuntivo, na nomenclatura brasileira) com a conjunção embora. Isto acontece porque embora introduz uma oração subordinada concessiva, como se pode verificar em (1):

(1)    Embora esteja a chover, o dia está agradável.

De acordo com Rui Marques, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian), «uma possível razão para que não seja o indicativo o modo selecionado prende-se com o contraste que este tipo de construção expressa: a oração principal descreve uma situação que não se esperaria que ocorresse quando se verifica a que é descrita pela oração subordinada concessiva» (página 683). Portanto, a seleção do modo conjuntivo e indicativo é sobretudo vista como uma estratégia da língua para focalizar a oração que veicula informação inesperada.

A seleção do modo está sobretudo dependente do contexto da informação veiculada por uma determinada oração, nomeadamente, o seu valor de verdade. Embora possa ocorrer em frases simples, como (2), o conjuntivo é por excelência o modo das orações subordinadas, sendo, portanto, selecionado por conjunções, como é o caso de embora e de se

A problemática da linguagem neutra e inclusiva
Língua portuguesa, género e identidade

«Quando se fala de linguagem inclusiva, são muitas as questões levantadas. Afinal, qual será a sua origem? Que tipo de propostas são apresentadas? E, no caso das línguas de género marcado, quais as implicações que um sistema de linguagem neutro tem nas palavras e na economia do discurso?»

Neste texto a consultora do ciberdúvidas, Inês Gama, discute questões relativas à linguagem neutra e inclusiva. 

Pergunta:

Gostaria de agradecer, antes de mais, os vossos serviços dedicados.

Estou a aprender português como língua estrangeira e estou inscrita num curso. Num livro de áudio, deparei-me com a seguinte frase: «nas profundezas das vossas esperanças e desejos». Ao transcrever o capítulo em questão, escrevi acidentalmente: «nas profundezas dos vossos esperanças e desejos», após o que a minha professora de português corrigiu «dos vossos» para 'das vossas'. Como eu tinha pensado que um adjetivo que pertencesse a dois ou mais substantivos de géneros diferentes se escreveria no masculino plural, fiquei surpreendida por saber que (normalmente) não é esse o caso em português.

Como já é meu hábito, procurei o assunto no Ciberdúvidas ("A concordância adjetival com substantivos de géneros diferentes"), onde fiquei a saber que, embora menos comum, o plural masculino também pode ser usado. A minha professora, no entanto, não sabia se esta regra se aplicava aos substantivos possessivos. Sei bem que «nas profundezas dos vossos esperanças e desejos» não é a frase mais bem formulada («dos vossos desejos e esperanças» faria mais sentido). Isso eu percebo.

Mas gostaria de saber se «nas profundezas dos vossos esperanças e desejos» é gramaticalmente correto, ou simplesmente errado, e se os substantivos possessivos seguem a mesma regra que os adjetivos, que eu penso que sim.

Espero que nos possam ajudar aqui para que possamos ter a certeza quando a dúvida surgir novamente.

Agradeço desde já.

Resposta:

Em primeiro lugar, felicito a consulente pela sua curiosidade relativa ao funcionamento da língua portuguesa e pela sua vontade de aprender este idioma.

Neste caso, a construção que está correta é «nas profundezas das vossas1 esperanças e desejos».

Esta deve ser a estrutura a adotar porque, como assinalam Cunha e Cintra2, «quando um só possessivo determina mais de um substantivo, concorda com o que lhe esteja mais próximo». Portanto, visto que, na construção apresentada pela consulente, o nome mais próximo do determinante possessivo é esperanças (nome feminino plural), este deve concordar em género e número com este nome, assumindo, então, a sua forma feminina plural.

Assinala-se ainda que as regras de concordância dos possessivos são um pouco diferentes daquelas aplicadas entre nomes e adjetivos. Quando o adjetivo está depois do nome, este pode ou concordar com o nome mais próximo (situação mais comum), como em (1), ou com os nomes em conjunto, indo assim para o masculino plural (situação mais rara), como em (2). Todavia, quando o adjetivo vem antes do nome (posição pré-nominal), a concordância faz-se sempre com o nome mais próximo, como em (3). Como os possessivos vêm, grosso modo, antes de nome a sua concordância é sempre feita com o nome que lhe está mais próximo.

(1) As meninas tinham uns sapatos e umas malas belas.

(2) As meninas tinham uns sapatos e umas malas belos.

(3) As meninas tinham uns belos sapatos e umas malas.

 

1. No quadro da nomenclatura portuguesa, os possessivos, como vosso, podem apenas pertencer à classe dos pronomes ou dos determinantes.

2.