Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a forma correta?

«Ele subiu dois lanços de escadas.»

ou

«Ele subiu dois lanços de escada.»

ou

«Ele subiu dois lanços das escadas.»

Resposta:

As três frases apresentadas pela consulente estão corretas e são aceites em português.

Entre as frases «Ele subiu dois lanços de escadas» e «Ele subiu dois lanços de escada» a diferença prende-se com o uso da palavra escada: na primeira frase esta surge no singular e na segunda no plural. A utilização do termo escada com a aceção «conjunto de degraus» é muitas vezes feita de modo indistinto no singular e plural, sendo que a sua ocorrência no singular e no plural nem sempre é previsível.

A maioria dos dicionários de língua portuguesa não reconhece este uso indistinto, preferindo a utilização da palavra singular em situações em que se refere apenas a um único grupo de degraus, sendo a palavra plural relegada para os contextos em que se refere a vários grupos. Contudo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa inclui, na sua versão em linha, a expressão «lanço de escadas», dando, portanto, conta da utilização desta palavra no plural como referência a um único conjunto de degraus. Já o dicionário Infopédia apenas aceita expressões como «lanço de escada», apresentado como exemplo a frase: «Subiu a correr os sete lanços de escada». Isto indica que, se, por um lado, se pretende referir que os lanços pertencem a uma única escada, então, dever-se-á usar «dois lanços de escada»; se, por outro lado, se quer mencionar dois lanços que pertencem a mais do que uma escada, então, poder-se-á usar «dois lanços de escadas».

Todavia, uma pesquisa no corpus do Português de Mark Davies, na secção da atualidade, indica que se verifica uma tendência nos usos para a utilização da expre...

«Aquele livro, o António qué-lo» ou «Aquele livro, o António quere-o»?
As formas dos pronomes clíticos com o verbo querer

Apontamento da consultora Inês Gama sobre as formas dos pronomes clíticos acusativos com o verbo querer, incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 29 de outubro de 2023.

Pergunta:

Qual é a diferença da estrutura de superfície e estrutura profunda nas orações adjetivas? Podem dar exemplos?

Obrigado

Resposta:

Segundo o modelo generativista, todas as frases possuem, no mínimo, duas estruturas: a estrutura profunda e a estrutura superficial. A estrutura profunda das frases corresponde à componente semântica, isto é, a toda a informação relativa ao significado. Já a estrutura superficial consiste nas componentes fonológicas e sintáticas.

No caso das orações subordinadas adjetivas, poder-se-á considerar que a sua estrutura profunda está relacionada com a informação veiculada por estas e que tem a função de identificar a parte ou a entidade precisa denotada pelo antecedente, isto é, atribuir-lhe um valor semântico de especificidade1.

Já a estrutura superficial destas construções relaciona-se com a função sintática desempenhada. Por exemplo, na frase (1), a estrutura profunda da oração subordinada adjetiva (segmento sublinhado) define as propriedades que permitem identificar o subconjunto a que o antecedente pertence, ou seja, de todas as crianças do mundo a frase refere-se apenas àquelas que brincam, ao passo que a estrutura superficial consiste na função sintática de modificador restritivo do nome que é desempenhada pela oração.

(1)    As crianças que brincam são mais felizes.

Veja-se ainda o exemplo da frase (2). Nesta frase, a estrutura profunda da oração adjetiva (segmento entre vírgulas) contribui com informação adicional sobre o antecedente, ou seja, completa a frase com informação sobre o lugar de onde vem o aluno, já a estrutura superficial traduz-se na função sintática de modificador apositivo do nome e que é desempenhada pela oração subordinada adjetiva da frase.

(2)    O aluno, que veio de Coimbra, teve a melhor nota da escola.

 

...

Pergunta:

Em geral, nas aulas de portugês, se quisermos referir-nos a uma mudança, usamos o verbo ficar ou outras vezes o verbo tornar-se.

Fazendo uma pesquisa, encontrei os seguintes equivalentes dos verbos mencionados num dicionário:

«converter-se a (religião) ou em, transformar-se em, ficar, pôr-se com adjetivo, fazer-se, tornar-se, mudar, mudar-se, mudar de, alterar, trocar e cambiar (cujo uso se restringe a dinheiro), chegar a e vir a».

Poderiam ajudar-me quanto à diferença entre estas formas? Podemos, por exemplo, dizer (como em espanhol) : «puseram-se inquietos» ou «ele fez-se rico»?

Obrigado pela sua ajuda e dedicação

Resposta:

Os verbos ficar e tornar-se, no seu uso copulativo, são semanticamente próximos, uma vez que partilham o sentido de mudança de estado. Observe-se, por exemplo, que a frase (1) descreve a mesma situação da frase (2), isto é, a situação de alguém que deixou de ter pouco dinheiro e passou a ter muito.

(1)  Ele fez-se rico.

(2)  Ele tornou-se rico.

Todavia, o verbo tornar-se introduz uma ideia de conversão ou de transformação que ficar não tem. Este verbo combina-se preferencialmente com predicados de natureza estável e não permanente, veiculando um valor de transformação. Por outro lado, ao contrário de ficar, o verbo tornar-se quando combinado com constituintes predicativos episódicos gera enunciados pouco aceitáveis. Note-se que, enquanto a frase (3) não apresenta qualquer problema de aceitabilidade, a frase (4) já é mais dúbia.

(3)  Eles ficaram inquietos.

(4)  ? Eles tornaram-se inquietos.

No que concerne ao verbo ficar, a sua semântica é um pouco mais complexa de perceber, na medida em que, no português europeu, de acordo com Rute Rebouças em «Sobre a semântica do verbo ficar em construções progressivas com adjetivos e particípio», este verbo é capaz de, por um lado, se comportar como um verbo principal1, assumindo o significado básico de permanecer num determinado lugar, como em (5); por outro lado, pode apresentar-se como um verbo copulativo, indicando o resultado de uma mudança de estado ou de evento, como em (6); ou como auxiliar passivo para indicar um estado resultativo ou conseque...

O que será afinal um «orçamento pipi e betinho»?
A propósito das considerações do líder do PSD

«Em Portugal, por esta altura, são habituais as discussões em torno do orçamento de Estado (OE). Normalmente, as páginas dos jornais e os espaços noticiosos dos canais de televisão são preenchidos por vocabulário complexo da área da economia e das finanças. [...] Todavia, até ao momento, uma boa parte das discussões sobre este importante documento têm estado centradas não nas propostas que este apresenta, mas antes nos adjetivos que o líder do Partido Social Democrata (PSD), Luís Montenegro, utilizou para o caracterizar. [...] Serão estes termos apropriados para um tipo de discussão que se pretende séria? E já agora quais os seus significados e contextos de usos?»

À volta destas perguntas a consultora do ciberdúvidas Inês Gama apresenta algumas considerações sobre as palavras pipi e betinho.