Inês Gama - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Inês Gama
Inês Gama
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Licenciada em Português com Menor em Línguas Modernas – Inglês pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Português como Língua Estrangeira e Língua Segunda (PLELS) pela mesma instituição. Fez um estágio em ensino de português como língua estrangeira na Universidade Jaguelónica em Cracóvia (Polónia). Exerce funções de apoio à edição/revisão do Ciberdúvidas e à reorganização do seu acervo.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se, em bom estilo literário de língua portuguesa, são aceitáveis construções como as que seguem (refiro-me às orações [que finalizam as frases], com o gerúndio, tão comuns no inglês):

«O matuto ficou ainda um instante perto da vítima, qual fantasma, os olhos cintilando no escuro.»

«Tito ia à frente, seguido dos companheiros, os punhais cintilando na escuridão.»

Se possível, poderiam dar-me exemplos tirados dos melhores autores?

Agradecido desde já.

Resposta:

O uso do gerúndio é aceite em português, e as frases estão corretas.

Esta forma verbal utiliza-se em várias situações. Nos casos em que o predicado da oração é uma forma simples do gerúndio, como em «cintilando no escuro», está-se perante uma oração gerundiva. Este tipo de orações «exprime a simultaneidade do estado de coisas nela descrito relativamente ao intervalo de tempo em que se situa o estado de coisas da outra oração»1. Portanto, nos exemplos apresentados pelo consulente, a colocação do verbo cintilar no gerúndio serve para indicar a ocorrência desta situação ao mesmo tempo que outras.

Em «os olhos cintilando no escuro» e «os punhais cintilando na escuridão», o gerúndio cintilando também caracteriza os nomes «olhos» e «punhais», ou seja, modifica-os. Note-se, contudo, que o tipo de estruturas apresentadas pelo consulente são consideradas, no discurso purista, como «construções afrancesadas» e preceituam-se construções alternativas, por meio de um adjetivo ou de uma oração subordinada adjetiva relativa, como a seguir se ilustra (para facilitar a análise, excluem-se as ocorrências do artigo definido os2):

(1) «olhos cintilando no escuro» = «(olhos) cintilantes no escuro»/«(olhos) que cintilavam no escuro»

(2) «punhais cintilando na escuridão» = «(punhais) que cintilavam na escuridão».

No entanto, há muito tempo que se contesta a censura sobre «o poder caracterizador» do gerúndio, sobre o qual o filólogo Manuel Rodrigues Lapa (1899-1989) se pronunciou favoravelmente3.

O gerúndio é, nos dias de hoje, sobretudo utilizado nas variantes brasileira e africana, em construções que, na variante europeia4, selecionam o infinitivo anteced...

Pergunta:

Estou no ensino médio e desenvolvi interesse por língua portuguesa, porém, uma dúvida surgiu em minha mente: é gramaticalmente correto repetir preposições, artigos e pronomes na mesma frase?

Por exemplo:

"Ele comprou um presente para levar para a festa surpresa." (Repetição da preposição "para")

"O aluno entregou o projeto, e o professor se surpreendeu." (Repetição do artigo "o")

"Eu gosto de ler, e quando leio, eu aprendo algo novo." (Repetição do pronome "eu")

Consegui pensar somente nesses exemplos. Isso é considerado aceitável na gramática portuguesa ou um erro que deve ser evitado?

Agradeço antecipadamente pela colaboração e esclarecimento sobre a questão.

Resposta:

Todas as frases apresentadas pelo consulente estão corretas e são aceitáveis em português. Note-se que por frase agramatical entende-se uma estrutura que não respeita as regras da gramática, o que não é o verificado nos exemplos. As repetições de tais palavras nas construções ilustradas pelo consulente podem provocar uma certa estranheza mais pelo seu efeito estilístico, nomeadamente, prosódico e rítmico, e não tanto pela sua estrutura.

Do ponto de vista estilístico, a repetição de determinadas palavras é, por vezes, feita para provocar um determinado efeito no texto, como por exemplo, o recurso a figuras de estilo que visam a repetição propositada de vocábulos (p. e. anáfora). Segundo o E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, a estilística «distingue-se habitualmente da gramática, porque não se ocupa das funções que desempenham na comunicação verbal», mas antes nos efeitos produzidos pela linguagem que se utiliza num dado contexto e com um determinado fim.

No caso da primeira frase, «Ele comprou um presente para levar para a festa surpresa», a repetição da preposição para é necessária, na medida em que a sua função é estabelecer uma relação entre a palavra que a antecede e aquela que a segue. Neste caso, a primeira preposição para é exigida pelo nome presente de modo a introduzir a finalidade dessa oferta, ao passo que o segundo para é regido pelo verbo levar de forma a indicar o destino do transporte do presente. Embora a repetição da preposição nesta frase possa em termos estilísticos não ser o pretendido, uma vez que causa um efeito prosódico pouco desejável, ela é necessária para o seu bom funcionamento sintático e semântico...

Os sentidos do verbo <i>trolar</i>
Considerações sobre o neologismo

«O verbo trolar tem origem na palavra inglesa troll, que é, nos dias de hoje, frequentemente utilizada para descrever situações relacionadas com discussões na Internet em que alguém deliberadamente escreve um comentário para fazer troça de outro» – escreve Inês Gama, consultora do Ciberdúvidas, neste apontamento sobre o verbo trolar, a propósito da discussão desta palavra no último Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer (transmitido na madrugada de 4 de novembro, no canal de televisão SIC Notícias).

Pergunta:

Tenho ouvido e lido «a envolvência da população...» (em determinado evento, celebração, acontecimento).

Deve dizer-se assim ou será mais correto «o envolvimento da população em»?

Agradeço a disponibilidade.

Resposta:

De facto, no sentido de «participação ativa em determinado projeto» (como dá conta a edição em linha do Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa), o mais correto é o uso do nome masculino envolvimento. Por exemplo, a frase «Foi notório o envolvimento da população no ato eleitoral» pode ser entendida como ter sido evidente a participação da população nas eleições.

As palavras envolvência e envolvimento têm ambas origem no verbo envolver, que significa, de acordo com o dicionário Priberam, «incluir, meter, comprometer, implicar, rodear». De acordo com este dicionário e com o dicionário Houaiss, envolvência é uma palavra com um significado relacionado com «aquilo que envolve ou está em volta», tendo como sinónimo o adjetivo envolvente. Já o nome envolvimento significa, segundo estes dois dicionários, «ato ou efeito de envolver». Portanto, de acordo com estas duas obras, estas palavras partilham origem no mesmo verbo, mas não podem ser utilizadas com o mesmo sentido.

No entanto, o dicionário em linha Infopédia dá conta que tanto envolvência como envolvimento podem ser u...

Semântica: uma estrela invulgar no espaço político
A relevância do significado numa comunicação eficaz

«Preocupar-se com o uso acertado das palavras é também ter cuidado com o sentido que veiculam, uma vez que este constitui uma parte importante de qualquer ato comunicativo. (...) Em circunstâncias relativas às relações de diferentes estados que muitas vezes estão em conflito, defende-se um cuidado nas palavras usadas, uma vez que a interpretação errada de um termo é o suficiente para agravar a situação.» 

Texto da consultora do Ciberdúvidas Inês Gama a propósito das declarações do secretário-geral das Nações UnidasAntónio Guterres, no passado dia 24 de outubro.