Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
Fernando Pestana
21K

Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Ela tem olhos brilhantes feitos o Rei Sol.»

Dúvida: na frase apresentada está correto o uso de feitos relacionando olhos brilhantes e o sol?

Obrigada.

Resposta:

Certos vocábulos da língua portuguesa sofrem um processo chamado gramaticalização, que diz respeito à transformação de uma palavra potencialmente passível de sofrer flexões, como um verbo, numa palavra gramatical, ou seja, numa palavra que perde sua potência flexional. Existem muitos exemplos de gramaticalização na língua portuguesa.

No caso em apreço, a forma verbal de particípio (feito; ex.: «O prato foi feito com cuidado»; «Ela havia feito os exercícios»; «Feitas as ressalvas, todos concordaram com ela») se transforma numa conjunção comparativa equivalente a como ou «assim como», portanto se torna invariável, isto é, não passível de flexão, o que torna errado o uso de feitos.

Assim, a forma correta é esta:

– Ela tem olhos brilhantes feito o Rei Sol.

= Ela tem olhos brilhantes como o Rei Sol.

Ainda vale dizer que a oração «feito/como o Rei Sol» tem, como é costumeiro em construções comparativas, um verbo subentendido:

– Ela tem olhos brilhantes feito/como o Rei Sol tem.

Em suma, nesse contexto frasal, o feito deixou de ser um verbo no particípio para assumir o estado de conjunção comparativa. No português brasileiro, esse emprego é muito comum – tão comum a ponto de o gramático normativo tradicional Domingos Paschoal Cegalla registrá-lo em sua Novíssima Gramática da Língua Portuguesa", no rol de conjunções comparativas.

Sempre às ordens!
Colocação pronominal:<br> português do Brasil x português europeu
Convergência e divergência das duas normas-padrão

«Todos sabemos que, na modalidade FALADA da língua portuguesa, há fortes diferenças entre a colocação pronominal brasileira, que privilegia a próclise («Te amo«), e a colocação pronominal lusitana, que privilegia a ênclise («Amo-te»). [...] No entanto, o objetivo desta postagem se centra na modalidade ESCRITA formal, que consubstancia a língua nos diferentes territórios. E, nesse contexto, qual é o verdadeiro grau dessa diferença entre as normas?»

Sobre o contraste entre a norma brasileira e a norma de Portugal quanto â colocação dos pronomes átonos, transcreve-se com a devida vénia o apontamento que o gramático brasileiro Fernando Pestana dedicou ao tema no seu mural no Facebook em 14 de abril de 2025.

Pergunta:

Gostaria de saber se é apropriado o uso do subjuntivo na frase abaixo, isto é, quanto à utilização da palavra desenvolvessem:

«Havia diferentes formas de intervenção, e, na maioria dos casos, os presidentes não agiam ao arrepio da lei, mesmo quando desenvolvessem uma atuação nitidamente partidária, que era a que se manifestava nas nomeações e demissões de autoridades locais importantes, como delegados e subdelegados, nas proximidades dos pleitos.»

Grato!

Resposta:

O conceito de correlação verbal trata da harmonia de sentido existente entre os tempos e modos verbais correlacionados numa frase.

Na frase trazida pelo consulente, é preciso notar que todos os verbos estão no modo indicativo, no tempo pretérito imperfeito, portanto dentro do campo da certeza, da factualidade:

«Havia diferentes formas de intervenção, e, na maioria dos casos, os presidentes não agiam ao arrepio da lei, mesmo quando desenvolvessem uma atuação nitidamente partidária, que era a que se manifestava nas nomeações e demissões de autoridades locais importantes, como delegados e subdelegados, nas proximidades dos pleitos.»

Assim, nada justifica o uso do subjuntivo, com valor hipotético, pois geraria uma desconformidade modo-temporal com os demais verbos, de maneira que, no lugar de "desenvolvessem", se deveria usar desenvolviam.

<i>Facto</i> ou <i>fato</i>? <i>Registo</i> ou <i>registro</i>?
Um breve diálogo (real) sobre a língua

«Cada norma linguística (seja no português, seja no espanhol, seja no inglês, seja no francês) tem as suas peculiaridades, pelo que, quanto mais estudamos a língua, menos sobranceiros e mais compreensivos ficamos» – sublinha o gramático Fernando Pestana a respeito do vezo de certos falantes de português de rejeitarem formas corretas e gramaticais, mas diversas da variedade materna. Texto que o autor publicou na sua página de Facebook em 2 de abril de 2025 e que se partilha com a devida vénia.

Pergunta:

Existe a frase «Eu falto terminar a tarefa»?

Existe «eu falto à escola...», «Eu falto à reunião...», «Falta um aluno na sala...»

Na gramática, a estrutura «Eu falto» + outro verbo no infinitivo é válida na língua portuguesa normativa?

Qual seria a classe gramatical/função sintática do verbo faltar e terminar nessa frase?

Resposta:

No português brasileiro*, é bastante comum o que se chama de reanálise sintática: ocorre quando os falantes começam a interpretar uma estrutura gramatical de forma diferente da original, levando a mudanças na língua ao longo do tempo.

No caso trazido pelo consulente (em que a construção normativa padrão «Falta-me terminar a tarefa» se torna «Eu falto terminar a tarefa»), a reanálise envolve a tendência do português brasileiro de priorizar o sujeito (em vez do objeto), de priorizar o agente (em vez da ação em si) e de priorizar o tópico (em vez do foco), transformando o verbo transitivo indireto («faltar-me» = «faltar a mim») em verbo auxiliar (faltar + infinitivo)¹. Isso significa que a estrutura da frase sofre um ajuste para destacar quem realiza a ação (sujeito/agente), como o tema central da conversa (tópico), por isso o objeto (me) passa a sujeito (eu). Dentro da gramática tradicional, esse fenômeno está relacionado ao que os antigos gramáticos chamavam "afetividade", porque em geral (portanto, nem sempre) isso ocorre com verbos que expressam algum sentimento ou estado de espírito do enunciador (do "eu"). Veja outros exemplos:

– Custa-me crer em você > Eu custo a crer em você.

– Admira-me que ela não tenha retornado > Eu me admiro que ela não tenha retornado.

– Alegrou-me estar com vocês hoje > Eu me alegrei por estar com vocês hoje.

Como consequência dessa reanálise sintática, a ordem das palavras se torna mais fixa, consolidando a sequência Sujeito-Verbo-Complemento (SVC).

Agora, importante: segundo a norma-padrão da língua portuguesa, algumas dessas construções de reanálise sintática ainda não estão estáveis nem consolidadas na norma culta, de modo que, em situações comunicativas mais formais (sobretudo na escrita), recomenda-se «Falta-me terminar a tarefa», «Ainda me falta terminar a tarefa», «Já não me falta terminar a tarefa» etc., ...