Fernando Pestana - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Fernando Pestana
Fernando Pestana
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Fernando Pestana é um gramático e professor de Língua Portuguesa formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Linguística pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atua há duas décadas no ensino de gramática voltado para concursos públicos e, atualmente, em um curso de formação para professores de Português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Respeitosa turma do Ciberdúvidas, como vão? Antes de qualquer coisa, é preciso agradecer muito muito muito pelo trabalho de vocês. Vocês não podem imaginar a quantidade de vezes em que salvam minhas dúvidas e me ajudam a seguir em frente no ofício da escrita. Me impressiona quando me vejo lendo artigos e respostas que vão de 1996 a 2024. É coisa linda mesmo. Vida longa!

Dito isso, queria tirar uma dúvida que sempre me pega. E que me surgiu numa passagem específica de algo que estou escrevendo. A saber: «...mede o litoral como à criança no batente da porta.» A ideia aqui é uma comparação: a pessoa em questão mede o litoral como mediria a altura de uma criança no batente de uma porta. Antes, a passagem não tinha crase: «...mede o litoral como a criança no batente da porta.» Entendo que ela estaria correta, seria uma comparação direta: mede o litoral como [mede] uma criança no batente.

Agora, revisando, me pareceu mais interessante o uso da crase. Além de esteticamente mais intrigante, acho que ajudaria a não confundir a leitura. Sem ela, a pessoa pode entender que se mede o litoral como uma criança o mediria no batente da porta. Essa crase está correta, não?

Por vezes, quando vamos dançando com os verbos, eles parecem aceitar uma regência indireta que normalmente não aceitam. Poderiam elucidar a questão? Além de entender se a crase faz sentido, gostaria de entender se estou doidão ou se essa variação de regência existe mesmo.

Desde já, muito obrigado! Abraços!

Resposta:

O consulente percebeu bem.

Por razões de clareza, pode haver um objeto direto preposicionado* iniciado pela preposição a numa construção comparativa. Exemplo:

«Olho Gabriela como a uma criança, e não mulher feita.» (Ciro dos Anjos)

Se não houvesse a preposição, o sentido seria outro: «Olho Gabriela como uma criança (olha)...», em que uma criança passaria a ser o sujeito do verbo implícito, e não o objeto direto. Com a preposição, a leitura é esta: «Olho Gabriela como olho uma criança...»

Assim, aplica-se o mesmo em «... mede o litoral como à criança no batente da porta», o que justifica a crase, pois a preposição a (usada estilisticamente para favorecer a clareza) que introduz o objeto direto preposicionado se contrai com o artigo definido a (a + a criança = «à criança»).

Fica a seguinte sugestão de consulta para mais detalhes: Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Carlos Henrique da Rocha Lima (2011: 303-305); está na parte de objeto direto preposicional. Boa leitura.

Sempre às ordens!

 

*Visto ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura e a referência gramaticográfica brasileira.

Pergunta:

Na frase «Não sei por quê nem como aquilo ocorreu», qual a justificativa para o porquê estar separado e com acento na frase acima já que não vem imediatamente antes de um sinal de pontuação, final de frase ou isolado?

Obrigado.

Resposta:

Na norma-padrão do português brasileiro, usa-se por quê em três contextos:

(1) quando vem sucedido de sinal de pontuação (este é o mais frequente);
(2) quando finaliza uma oração;
(3) quando vem antes de conjunção coordenativa ligando dois termos.

Em todos os três casos, o monossílabo tônico terminado em e é acentuado com acento circunflexo (quê), conforme a regra de acentuação gráfica.

Note que a vogal e é pronunciada claramente com som de ê – é bem diferente da pronúncia do que numa fala espontânea e dinâmica em «Não sei por que ela faltou à aula», em que o som de "que" é comumente empregado atonamente, assim: "qui" ("Não sei pur qui ela faltou à aula").

Essa pronúncia tônica do quê é o que determina o uso de «Não sei por quê nem como aquilo ocorreu» ou «Sem questionarem por quê ou para quem ia o prêmio, decidiram participar do jogo», que exemplificam o caso (3).

Exemplos do caso (1):

– Agora você soube por quê, certo?
– Sem seu esclarecimento, nunca entenderia por quê.
– Por quê? Não é possível!

Exemplos do caso (2):

– Não consigo compreender certas atitudes suas, ainda que você me diga que, às vezes, entender por quê é difícil mesmo.
– Descobrir por quê ficou fácil, sobretudo depois que eles foram denunciados.

Observação: não se usa por quê antes de vírgula marcando intercalação; exemplo: «O aluno não sabe por que, mesmo depois da explicação, ele foi reprovado pelo professor» (certo); «O aluno não sabe por quê, mesmo depois da explicação, ele foi reprovado pelo professor» (errado).

Sempre às ordens!

Pergunta:

 Não há consenso perfeito entre os gramáticos de nosso idioma (e de idioma algum, creio eu). Há, por exemplo, certo debate quando ao plural de certos substantivos compostos. A minha dúvida é a seguinte: como devemos proceder em tais casos?

Há matérias em que basta recorrer ao parecer do autor com mais autoridade para saber a posição correta (ou ao menos mais segura), mas me parece dificílimo definir qual dos entendidos mais célebres de nosso idioma (Napoleão Mendes de Almeida, Celso Cunha, Rocha Lima, Cegalla, Manuel Said AliBechara etc.) possui maior autoridade. Basta aderirmos ao julgamento do autor de nossa preferência? Ou pode ocorrer deste ou daquele gramático ter uma posição errada? E caso possa haver equívoco por parte de um autor, como podemos saber quem está correto?

Obrigado.

Resposta:

O papel dos gramáticos normativos é descrever (e normatizar) um modelo de uso supradialetal (a norma-padrão) a ser empregado em situações mais formais de comunicação, a fim de padronizar a língua tomada como culta, aquela de prestígio social. Os dicionaristas colaboram para isso também.

Quando se deseja extrair um padrão a partir das divergências normativas entre renomados estudiosos, é preciso verificar (1) qual é a visão majoritária entre eles (que não necessariamente pode ser única, pois a norma-padrão comporta formas variantes entre si) e (2) como se vêm usando as formas linguísticas contemporaneamente.

Para o ponto (1), é preciso cotejar o que ensinam os gramáticos e dicionaristas, para daí extrair a visão majoritária. No caso do estudo do léxico ou da ortografia, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras (ABL), também entra em cena, sobretudo como argumento de maior peso.

Para o ponto (2), é preciso verificar em textos escritos pelos melhores escritores do idioma, que são, em geral, considerados pela sociedade como os nossos literatos, ensaístas, articulistas de reconhecida qualidade escrita entre os seus pares e entre os leitores qualificados. Se se deseja conhecer a norma culta lusitana ou a norma culta brasileira, é preciso investigar a fundo como os escritores lusitanos ou brasileiros têm usado a língua (escrita) ao longo do tempo — com foco maior na norma contemporânea, para não se incorrer em anacronismo.

O ponto (2) costuma estar de acordo com a visão majoritária do ponto (1), pois existe uma premissa que governa as decisões dos estudiosos e normatizadores da língua: o uso determina a norma, por isso os gramáticos e dicionaristas vão colher nos usos linguísticos frequentes nos melhores escritores aquilo que definem ...

Pergunta:

Passei para minha amiga revisora de textos um documento de texto, contendo um informativo de divulgação dos livros da Saga Confusões Conjuntas (17 livros principais de comédia dramática, pastelão e maluca e um livro complementar de minha autoria).

No caso, tinha escrito: «dezessete livros principais» (por extenso), e ela trocou por algarismos, passando para mim esta referência aqui no caso.

Minha dúvida é: por quais motivos numerais com até duas sílabas devem ser escritos por extenso, enquanto numerais com três ou mais sílabas devem ser escritos com algarismos?

E por que o numeral cem (100) é uma exceção à regra também?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Eis o que diz Evanildo Bechara no tópico "Escrita dos Numerais", no capítulo de Numeral da sua gramática:

«Não há princípios rígidos para, na escrita, se usarem os numerais por extenso ou em algarismos. A prática na imprensa e em livros pode-nos oferecer as seguintes recomendações extraídas do Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo

Em seguida, apresenta mais de 30 orientações divididas entre "a) Instruções gerais", "b) Por extenso" e "c) Em algarismos".

No que toca à dúvida levantada pelo consulente, Bechara nada diz sobre «até duas sílabas, X; e a partir de três sílabas, Y». Pelo contrário, as orientações gerais do autor são estas a respeito dos numerais cardinais: «De um a dez, escreva os números por extenso; a partir de 11, inclusive, em algarismos: dois amigos, seis operadores, 11 jogadores, 18 pessoas. Exceção: cem e mil.» No entanto, há casos específicos em que se usam algarismos, e não numerais por extenso, como em datas (Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2024), ou idades de pessoas (Ela tem 3 anos), ou porcentagens (Lá se foram 5% dos votos).

Desse modo, uma vez que o estudioso dedica três páginas de orientações sobre esse assunto, recomendamos vivamente que o consulente (ou o leitor desta resposta) consulte diretamente a gramática do professor Evanildo Bechara para mais esclarecimentos.

Sempre às ordens!

Pergunta:

Tem havido constantes discussões entre angolanos e brasileiros nas redes sociais, aqueles corrigem estes, afirmando ser errado dizer-se «na Angola», sendo o certo, «em Angola». Face ao exposto, eis as minhas questões?

1. Qual é a forma correcta segundo as normas portuguesa e brasileira, respectivamente?

2. Caso seja incorrecto do ponto de vista gramatical, este desvio, por assim dizer, por ser extremamente comum entre os brasileiros, pode ser considerado correcto segundo à norma brasileira? O que se pode dizer do ponto de vista normativo e do ponto de vista descritivo?

3. O que se pode dizer do ponto de vista sociolinguístico?

Obrigado.

Resposta:

Segundo todas as gramáticas brasileiras e portuguesas consultadas (descritivas e normativas), há uma unanimidade normativa: não se emprega artigo definido antes de Angola.

É claro que, assim como com qualquer topônimo não antecedido de artigo definido, pode-se usar tal determinante antes de Angola quando houver alguma especificação. Exemplo:

– A minha linda Angola tem muitas belezas.

–  A Angola dos meus pais não é mais a mesma.

Se, do ponto de vista descritivo, brasileiros vêm usando «a Angola», não se pôde constatar nas gramáticas descritivas do português do Brasil, de modo que se deveria proceder a uma pesquisa inédita com fins de confirmação desse suposto fenômeno.

Sempre às ordens!