Pergunta:
Respeitosa turma do Ciberdúvidas, como vão? Antes de qualquer coisa, é preciso agradecer muito muito muito pelo trabalho de vocês. Vocês não podem imaginar a quantidade de vezes em que salvam minhas dúvidas e me ajudam a seguir em frente no ofício da escrita. Me impressiona quando me vejo lendo artigos e respostas que vão de 1996 a 2024. É coisa linda mesmo. Vida longa!
Dito isso, queria tirar uma dúvida que sempre me pega. E que me surgiu numa passagem específica de algo que estou escrevendo. A saber: «...mede o litoral como à criança no batente da porta.» A ideia aqui é uma comparação: a pessoa em questão mede o litoral como mediria a altura de uma criança no batente de uma porta. Antes, a passagem não tinha crase: «...mede o litoral como a criança no batente da porta.» Entendo que ela estaria correta, seria uma comparação direta: mede o litoral como [mede] uma criança no batente.
Agora, revisando, me pareceu mais interessante o uso da crase. Além de esteticamente mais intrigante, acho que ajudaria a não confundir a leitura. Sem ela, a pessoa pode entender que se mede o litoral como uma criança o mediria no batente da porta. Essa crase está correta, não?
Por vezes, quando vamos dançando com os verbos, eles parecem aceitar uma regência indireta que normalmente não aceitam. Poderiam elucidar a questão? Além de entender se a crase faz sentido, gostaria de entender se estou doidão ou se essa variação de regência existe mesmo.
Desde já, muito obrigado! Abraços!
Resposta:
O consulente percebeu bem.
Por razões de clareza, pode haver um objeto direto preposicionado* iniciado pela preposição a numa construção comparativa. Exemplo:
«Olho Gabriela como a uma criança, e não mulher feita.» (Ciro dos Anjos)
Se não houvesse a preposição, o sentido seria outro: «Olho Gabriela como uma criança (olha)...», em que uma criança passaria a ser o sujeito do verbo implícito, e não o objeto direto. Com a preposição, a leitura é esta: «Olho Gabriela como olho uma criança...»
Assim, aplica-se o mesmo em «... mede o litoral como à criança no batente da porta», o que justifica a crase, pois a preposição a (usada estilisticamente para favorecer a clareza) que introduz o objeto direto preposicionado se contrai com o artigo definido a (a + a criança = «à criança»).
Fica a seguinte sugestão de consulta para mais detalhes: Gramática Normativa da Língua Portuguesa, de Carlos Henrique da Rocha Lima (2011: 303-305); está na parte de objeto direto preposicional. Boa leitura.
Sempre às ordens!
*Visto ser brasileiro o consulente, usou-se na resposta a nomenclatura e a referência gramaticográfica brasileira.