Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Com o nome comprovativo deve utilizar-se a preposição de, ou em? Portanto, eu devo dizer «tenho o comprovativo de como» ou «tenho o comprovativo em como»?

Obrigada e cumprimentos pelo vosso excelente trabalho!

Resposta:

O termo comprovativo, apesar de ser habitualmente usado como nome/substantivo — e tal classificação parece dever-se, sobretudo, ao facto de se preceder essa palavra por determinantes, tal como: o (artigo definido), um (artigo indefinido), este/esse/aquele (demonstrativo) ou mesmo meu/teu/seu (possessivo) —, na realidade, é um adjectivo, como o atestam vários dicionários (Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Enquanto adjectivo, comprovativo era usado, decerto, a acompanhar e a ilustrar um substantivo/nome que representasse um documento, como, por exemplo: declaração, atestado, certificado, certidão, diploma, processo... E tal adjectivo reforçava o valor de tal documento. Parece tratar-se de um pleonasmo, em que se repete uma ideia. E talvez devido a essa repetição ilógica, se tenha começado a optar pelo uso do adjectivo (em que é bem visível a ideia de «prova») e se tenha suprimido o substantivo/nome, dando-se ao adjectivo, incorrectamente, o  estatuto/valor de nome. A expressão correcta será «Tenho o documento comprovativo».

Por isso, e para se poder responder à pergunta do consulente, em princípio, dever-se-á ter em conta a preposição que é pedida pelos nomes/substantivos referidos...

Pergunta:

Posso considerar assertivo, directivo, promissivo e expressivo como tipos de discurso?

Os tipos de discurso cingem-se ao directo/indirecto, ou existem outros? Quais?

Muito obrigado.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Terminológico (DT), tanto as categorias (assertivo, directivo, compromissivo e expressivo) como os discursos (discurso directo e indirecto) pertencem aos domínios da Pragmática e da Linguística Textual, uma vez que se trata de produções de enunciados por parte de um locutor (o emissor) que, por sua vez, pressupõem a sua compreensão por parte de um interlocutor (receptor/emissor) ou de um ouvinte (receptor), ou seja, são actos interactivos de comunicação que exigem dos interlocutores competência comunicativa.

Mas, enquanto o discurso directo e o discurso indirecto são modalidades de reprodução do discurso no discurso (DT), as categorias de assertivo, directivo, compromissivo, expressivo e declarativo (declarações e declarações assertivas) correspondem a tipos de actos ilocutórios que, por sua vez, se inserem na área da comunicação e da interacção discursiva.

A tipologia dos actos ilocutórios surge para se distinguir em cada tipo de acto linguístico que o falante/locutor realiza a intenção do seu enunciado. Porque «cada tipo de acto ilocutório tem implicado um objectivo ilocutório que, de certo modo, regula e integra a força da ilocução» (Mira Mateus et all, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 73). Por isso se d...

Pergunta:

Deve dizer-se «em altos berros», ou «aos altos berros»? Ou poderá dizer-se de ambas as maneiras?

Muito obrigada.

Resposta:

Se essa expressão não tivesse o adjectivo — «altos» —, decerto que a dúvida não teria surgido. Porque se diz, naturalmente, «falar aos berros/aos gritos» e nem sequer se coloca a hipótese da construção «falar em berros». Esta construção — «falar em» — é usada, habitualmente, para se indicar a língua utilizada («falar em inglês/espanhol/francês») ou para se referir ao assunto/tema à roda do qual gira o discurso («falar em ti»).

Mas, ao colocar-se o adjectivo alto — que enfatiza/reforça o som do «berro» —, instala-se o campo do tom, que designa «a altura de sons emitidos pela voz humana; variação da altura, intensidade, duração». Ora, associada ao tom, usa-se a preposição em, como se pode verificar nos seguintes enunciados: «falar em tom baixo»; «dizer em tom irónico»; «cantar em todos os tons».

No exemplo apresentado não está expressa a palavra tom, mas a ideia está implícita. Por isso se diz «falar em altos berros», «dizer em voz alta», «contar em surdina/voz baixa».

Pergunta:

Qual o significado de «Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes?

Resposta:

«Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» é o enunciado com que o padre António Vieira termina o 4.º parágrafo do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes, frase essa que contém o juízo crítico do autor sobre a situação ou o caso que, intencionalmente, apresentou ao longo desse parágrafo, que conduziria a tal conclusão.

Nesse parágrafo, em que fala sobre a obediência, como a primeira das virtudes dos peixes («é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor», destaca a sua atitude perante o discurso/sermão de Santo António, elogiando o respeito que manifestam pelo santo através da «ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu servo António» e a admiração que demonstram quando «em inumerável concurso acudindo a sua voz, atentos e suapensos às suas palvras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam».

Ora, tais louvores dirigidos aos peixes têm o objectivo de evidenciar o contraste do comportamento dos homens face às pregações de Santo António. Em clara dissonância com a obediência, o respeito e a admiração, as virtudes atribuídas aos peixes — causa de «afronta e confusão para os homens!» —, os homens são caracterizados pelo desrespeito, pelo ódio, pela insensatez e pela obstinação no mal, pois reagem/respondem aos conselhos e repreensões do santo, perseguindo-o, expulsando-o das suas terras, desejando-lhe a morte («Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e ...

Pergunta:

Por favor, deixe-me saber se o mais-que-perfeito, ex.: comprara, era usado no passado como imperfeito do subjuntivo (conjuntivo) como em espanhol.

Obrigada.

Resposta:

O pretérito-mais-que-perfeito simples do indicativo, com valor de imperfeito do conjuntivo e condicional, é identificado como um dos «traços sintácticos característicos [do período pré-clássico]» (Pilar Vásquez Cuesta e Maria Albertina Mendes da Luz, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 188) da língua, em que o «português já está diferenciado do galego e que conhecemos de preferência através da prosa cultivada durante os reinados dos primeiros monarcas da Dinastia de Avis» (idem, p. 185).

A par de outros exemplos de alteração sintáctica (que por quem, nenhum por ninguém e da utilização do gerúndio), «o uso dos pretéritos mais-que-perfeitos simples do indicativo por imperfeitos do conjuntivo ou condicionais» (idem, p. 188) é citado como marca de diferença em relação ao período anterior, o que nos leva a inferir que, a partir de meados do séc. XIV, o pretérito mais-que-perfeito surge como forma verbal privilegiada usada em vez do imperfeito do conjuntivo e/ou o condicional.

Relativamente à realidade espanhola, temos informações de que, no século XV, o castelhano também passa a usar o mais-que-perfeito do indicativo com valor de imperfeito do conjuntivo e de condicional, como acontece na actualidade.1 Pode também pensar-se que em galego estaria a acontecer (acontece hoje) o mesmo que em castelhano e em português. A nossa língua é que depois divergiu, retomando ou reforçando a diferença entre o mais-que-perfeito simples do indicativo e o imperfeito do conjuntivo.