Pergunta:
Numa tradução de um conto popular chinês recolhido por Pearl Buck, aparece o advérbio debalde entre pontos finais. Tal facto não me chocou. Poderíamos ter substituído debalde por «em vão» e a situação continuaria a não me parecer chocante. Todavia os alunos perguntaram-me se um advérbio isolado poderia ocorrer como equivalente a uma frase. Gostaria que me ajudassem a responder a esta pergunta.
Muito obrigada.
Resposta:
De facto, o advérbio — categoria em que se insere debalde, como advérbio de modo (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, p. 539) — é «uma classe ou categoria de palavras bastante heterogénea e complexa, cuja designação repousa na ideia, ilusória, de que modifica apenas verbos e de que vem geralmente junto deles; na verdade, os advérbios modificam vários tipos de constituintes e podem ocupar posições distintas» (Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 417). Enquanto modificador (de verbo ou de outros constituintes) surge ou junto da palavra que modifica ou numa outra posição, fazendo parte de uma frase. Mas não é o que sucede no exemplo que a consulente apresentou, o que nos poderia levar a considerar tal construção estranha, ou até incorrecta, uma vez que negligencia a norma linguística.
Mas não podemos esquecer-nos de que o caso que nos apresenta — em que debalde aparece entre dois pontos finais, como se de uma frase se tratasse — acontece num texto literário que, por si só, tem a marca diferencial da licença poética ou, dito de uma outra forma, da liberdade poética, gozando do estatuto privilegiado de toda a obra de arte que o liberta das convenções impostas/exigidas a qualquer outro tipo de texto. Recordando o que nos diz Vítor Manuel Aguiar e Silva, «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 95), do que se depreende que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (idem, p. 147).<...