Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Numa tradução de um conto popular chinês recolhido por Pearl Buck, aparece o advérbio debalde entre pontos finais. Tal facto não me chocou. Poderíamos ter substituído debalde por «em vão» e a situação continuaria a não me parecer chocante. Todavia os alunos perguntaram-me se um advérbio isolado poderia ocorrer como equivalente a uma frase. Gostaria que me ajudassem a responder a esta pergunta.

Muito obrigada.

Resposta:

De facto, o advérbio — categoria em que se insere debalde, como advérbio de modo (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 17.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, p. 539) —  é «uma classe ou categoria de palavras bastante heterogénea e complexa, cuja designação repousa na ideia, ilusória, de que modifica apenas verbos e de que vem geralmente junto deles; na verdade, os advérbios modificam vários tipos de constituintes e podem ocupar posições distintas» (Mira Mateus et alli, Gramática da Língua Portuguesa, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003, p. 417). Enquanto modificador (de verbo ou de outros constituintes) surge ou junto da palavra que modifica ou numa outra posição, fazendo parte de uma frase. Mas não é o que sucede no exemplo que a consulente apresentou, o que nos poderia levar a considerar tal construção estranha, ou até incorrecta, uma vez que negligencia a norma linguística.

Mas não podemos esquecer-nos de que o caso que nos apresenta — em que debalde aparece entre dois pontos finais, como se de uma frase se tratasse — acontece num texto literário que, por si só, tem a marca diferencial da licença poética ou, dito de uma outra forma, da liberdade poética, gozando do estatuto privilegiado de toda a obra de arte que o liberta das convenções impostas/exigidas a qualquer outro tipo de texto. Recordando o que nos diz Vítor Manuel Aguiar e Silva, «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe é próprio e que lhe serve para transmitir comunicações peculiares, não transmissíveis com outros meios» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 95), do que se depreende que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (idem, p. 147).<...

Pergunta:

Preciso de ajuda, por não me ocorrer, sobre uma (ou várias) figura de estilo em que o sentido seja «falar do passado».

Acontece que estou a escrever as minhas memórias e necessito de empregar termos que remetam os leitores ao meu passado.

Sei que Fernando Pessoa, nas suas obras, emprega figuras de estilo que nos remetem ao seu passado.

Espero que esta minha explicação vos ajude a ajudarem-me.

Como não me ocorrem os ditos termos, não me ajuda muito procurar nos dicionários o que não me ocorre. Todavia, se conhecerem algum dicionário de figuras de estilo, físico ou on-line, por favor, indiquem-me.

Agradecido fico, desde já, da vossa ajuda, para assim eu continuar nos meus escritos.

Resposta:

Sempre que numa narrativa há referência a acontecimentos que decorreram no passado, distantes do tempo em que a acção decorre, sabemos que estamos perante uma analepse, um processo de representação que corresponde a um recuo no tempo narrado. Mas a analepse não é um recurso estilístico nem uma figura de estilo. Portanto, não sabemos em que medida esta informação poderá ser útil ao consulente, uma vez que tal palavra, enquanto termo literário, não é usada senão no domínio da análise literária para classificar essa técnica do narrador. Ninguém dará, num texto narrativo, algo como «agora vou recorrer à analepse». Mas é esse o processo de representação do texto do consulente que, centrado nas suas memórias, recua no tempo, procurando representar vivências passadas.

Ora, se o objectivo da sua escrita é o de contar as suas memórias, penso que estaremos perante um texto narrativo de cariz  autobiográfico em prosa. Ou será que prefere a poesia, usando a lírica? Também se trata de um texto na primeira pessoa, girando à roda da subjectividade do eu, dos seus pensamentos, emoções e sensações. É este o tipo de texto da maioria da poética de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos). Mas, embora tenha poemas cuja temática seja a nostalgia do passado (mais propriamente da infância perdida), em que relembra excertos de uma vivência remota, a sua obra não se centra nas memórias. Centra-se, sim, em si próprio, numa tentativa de auto-análise e na procura lúcida e obsessiva de autoconhecimento. Aliás, essa é uma das inquietudes de muitos dos artistas. Pois, ao recordar o passado, o sujeito poético/de enunciação estabelece relações com o seu presente, a sua realidade actual. Será também este o objectivo da escrita do consulente? O de procurar forma e meios de voltar (e de o recriar) ao passado?

Na poética de Fernando Pessoa apercebemo-nos de que são os sons, a ...

Pergunta:

Qual a melhor tradução de case-sensitive para português?

Obrigado.

Resposta:

Tratando-se de uma unidade lexical inglesa e que é usada em Portugal, case-sensitive é, decerto, um caso de estrangeirismo. Mas não se encontra no Dicionário de Estrangeirismos, que, por sua vez, «fornece uma lista que se pretende completa de todos os empréstimos não adaptados ortograficamente (isto é, que não respeitam a grafia do português, ou a relação entre grafia e pronúncia) e que se encontram registados na base de dados MorDebe»; neste recurso, «para todas estas palavras é indicada a língua de origem, o domínio a que pertencem e a forma aportuguesada ou o seu equivalente em português, sempre que exista». Não fazendo parte do inventário do léxico de palavras «estrangeiras» desse dicionário, torna-se praticamente impossível propor-se qualquer tipo de tradução, «a forma aportuguesada ou o seu equivalente em português».

O único resultado obtido das pesquisas feitas foi-nos fornecido pela Wikipédia: «Case sensitive é um termo em computação que significa que um programa ou um compilador faz a diferença entre letras maiúsculas e minúsculas. O termo vem do inglês e significa sensível à capitalização. Esse conceito aplica-se geralmente a linguagem ...

Pergunta:

Qual a forma correcta? "Rádio-despertador", ou "radiodespertador"? E porquê? Encontro as duas. Consultei alguns dicionários, mas não fiquei muito esclarecido.

Obrigado.

Resposta:

A lexicografia portuguesa parece favorecer a forma radiodespertador, mas, a seguir, apresentaremos argumentos para defender a grafia rádio-gravador. Mas, antes disso, convém referir alguns pontos importantes para a análise deste vocábulo.

A dúvida apresentada pelo consulente sobre a grafia de uma palavra formada com o termo rádio deve-se, decerto, ao facto de haver variação ortográfica em palavras com a presença de tal termo como primeiro constituinte. Por exemplo, vemos escrito rádio-opaco e radioopaco, isto é, com e sem hífen, ou até radioperador, sem vogal de ligação.  Estes casos ilustram a actual instabilidade dos critérios a adoptar perante os encontros vocálicos resultantes da associação de um radical terminado por vogal ao segundo elemento de composição começado também por vogal. Contudo, o que está em causa na pergunta feita — a opção correcta entre rádio-despertador ou radiodespertador — tem mais que ver com a análise morfológica e interpretação semântica desta palavra complexa, requerendo o enquadramento da palavra num dos dois tipos de composição propostos pela terminologia e pela análise gramátical mais recentes: referimo-nos à composição morfológica e à composição morfossintáctica.

Importa, portanto, analisar a especificidade de cada tipo de composição. Relativamente à morfológica, o Dicionário Terminológico (DT) explica-nos que «[o processo de composição morfológica] associa um radical a outro(s) radical(is) ou a uma ou mais palavras, havendo, de um modo geral, entre os ra...

Pergunta:

Gostaria de saber como se chama um natural do Campanário, na Madeira.

Os meus agradecimentos.

Resposta:

Segundo o Dicionário de Gentílicos e Topónimos, disponível no Portal da Língua Portuguesa, «o topónimo Campanário, na Madeira, não se encontra registado na MorDebe», razão pela qual nos é solicitado que se «verifique se a palavra se encontra bem escrita».

Tendo em conta essa situação de não registo de Campanário, informam-nos de «que nem todos os locais possuem um gentílico associado; isto é, nem sempre existe uma palavra atestada nas nossas fontes para denominar o habitante de determinada localidade». Por isso, «nestes casos, deverá utilizar-se a expressão “o habitante/o natural/de/o nome do lugar”; neste caso, "de/do Campanário"».

Importa lembrar que «existem várias formas de construir um gentílico: predominantemente recorre-se à junção ao topónimo ou à sua forma latina ou latinizada de um sufixo como -ense, -ês ou -ano. No entanto, não se pode estabelecer um padrão fixo para a criação de gentílicos, porque estes dependem fortemente não só da estrutura da língua, mas também da tradição e do uso de estruturas que se fixaram ao longo do tempo»

Os investigadores e participantes na elaboração deste dicionário esclarecem-nos sobre as fontes a que recorreram, dizendo-nos que «foram várias as obras de referência consultadas pelo portal. Todos os gentílicos aqui registados estão presentes (ou foram recolhidos) em:

dicionários — por estarem palavras já integradas no léxico;

prontuários — por resultarem de um trabalho cuidado de recolha sistemática;

doc...