Sempre que numa narrativa há referência a acontecimentos que decorreram no passado, distantes do tempo em que a acção decorre, sabemos que estamos perante uma analepse, um processo de representação que corresponde a um recuo no tempo narrado. Mas a analepse não é um recurso estilístico nem uma figura de estilo. Portanto, não sabemos em que medida esta informação poderá ser útil ao consulente, uma vez que tal palavra, enquanto termo literário, não é usada senão no domínio da análise literária para classificar essa técnica do narrador. Ninguém dará, num texto narrativo, algo como «agora vou recorrer à analepse». Mas é esse o processo de representação do texto do consulente que, centrado nas suas memórias, recua no tempo, procurando representar vivências passadas.
Ora, se o objectivo da sua escrita é o de contar as suas memórias, penso que estaremos perante um texto narrativo de cariz autobiográfico em prosa. Ou será que prefere a poesia, usando a lírica? Também se trata de um texto na primeira pessoa, girando à roda da subjectividade do eu, dos seus pensamentos, emoções e sensações. É este o tipo de texto da maioria da poética de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos). Mas, embora tenha poemas cuja temática seja a nostalgia do passado (mais propriamente da infância perdida), em que relembra excertos de uma vivência remota, a sua obra não se centra nas memórias. Centra-se, sim, em si próprio, numa tentativa de auto-análise e na procura lúcida e obsessiva de autoconhecimento. Aliás, essa é uma das inquietudes de muitos dos artistas. Pois, ao recordar o passado, o sujeito poético/de enunciação estabelece relações com o seu presente, a sua realidade actual. Será também este o objectivo da escrita do consulente? O de procurar forma e meios de voltar (e de o recriar) ao passado?
Na poética de Fernando Pessoa apercebemo-nos de que são os sons, a música, as cores da natureza, o sentir do vento, o correr das águas do rio que têm o poder de o transportar para a infância. É pela audição (das vozes das crianças a brincar, de um sino, ou de uma certa música), pela percepção das cores das folhas e do mover do vento como sinal de mudança, assim como pela observação do movimento das águas do rio, que o sujeito poético «salta» para o passado, fazendo associações através das sensações, dos sentidos. Ora, a alusão a diferentes sentidos e a diversas impressões sensoriais indica-nos a presença da sinestesia, «figura de estilo resultante da fusão de percepções relativas a dados sensoriais de sentidos diferentes» [Jacinto do Prado Coelho (dir.), Dicionário de Literatura, vol. 4, Porto, Figueirinhas, 1979]. Podemos verificar a presença e o poder de tais sensações nos seguintes exemplos:
«Quando as crianças brincam/E eu as oiço a brincar/Qualquer coisa em minh’alma/Começa a se alegrar.//E toda aquela infância/Que não tive me vem,/uma onda de alegria […]»
«Ó sino da minha aldeia,/Dolente na tarde calma,/Cada tua badalada/Soa dentro da minha alma.//[…] A cada badalada tua,/Vibrante no céu aberto,/Sinto mais longe opassado,/Sinto a saudade mais perto.»
«Pobre velha música!//[…] Recordo outro ouvir-te. Não sei se te ouvi/Nessa minha infância/que me lembra em ti.»
«Ah, como incerta, na noite em frente,/De uma longínqua tasca vizinha/Uma ária antiga, subitamente,/Me fez saudades do que as não tinha.// […] A ária é antiga? É-o a guitarra.//[…] Qual o passado que me trouxeram?/Nem meu nem de outro, é só passado./Todas as coisas que já morreram/A mim e a todos, no mundo andado.»
«No entardecer da terra/O sopro do longo Outono/Amareleceu o chão./Um vago vento erra,//[…] Soergue as folhas, e pousa/As folhas, e volve, e revolve,/E esvai-se inda outra vez./Mas a folha não repousa, […] Eu já não sou o que era;/O que sonhei, morri-o; […]»
«O tempo que eu hei sonhado/Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado/Foi só a vida mentida/De um futuro imaginado.//Aqui à beira do rio/Sossego sem ter razão./este seu correr vazio/ […]/ A vida vivida em vão.//Ondas do rio,tão leves/que não são ondas sequer/Horas, dias, anos, breves/Passam – verduras ou neves/Que o mesmo sol faz morrer.// […] Leve som das águas lentas,/Gulosas da margem ida,/Que lembranças sonolentas/De esperanças nevoentas! […]»
O heterónimo Álvaro de Campos regressa ao passado a partir de datas significativas — a do seu aniversário — e da lembrança dos espaços físicos — a casa da infância —, marcando os pormenores do contraste entre as duas realidades e evidenciando a consciência da passagem do tempo como sinónimo de perda. São exemplos disso os excertos:
«No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga […] // […] Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…/A mesa posta com ais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,/O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,/As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, […]»
«Pobre velha casa da minha infância perdida! Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!/Que é do teu menino? Está maluco./Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?»
Miguel Torga usa, também, uma metáfora (e pleonasmo) bastante sugestiva — «Descer dentro de mim à fundura possível» (Miguel Torga, A Criação do Mundo, Coimbra, 1995, p. 17) — e recorre a datas simbólicas, como a do Natal, para penetrar no passado: «Natal fora de casa do meu Pai,/Longe da manjedoira onde nasci./Neve branca também, mas que não cai / Na telha vã da infância que perdi.// […] E eu a tremer de frio e de saudade/Por memórias em mim quase apagadas…» (idem, p. 149).
Por sua vez, Fernando Campos, em A Casa do Pó, um romance histórico de cariz autobiográfico, utiliza vários recursos que o remetem ao passado, dando especial destaques às sensações que o transportam para outro tempo, sobretudo as do paladar, do olfacto e da audição: «Tenho ainda nos sentidos o gosto e o cheiro do vinho novo […]. Também era assim com o pão acabado de sair do forno. Ainda oiço vozes a gritarem-me: “Pão quente […]. Identifico sensações da infância no tempo que não no espaço. […] o gosto de certos frutos, de determinada casta de uva, destes figos, daqueles albricoques, das amoras […] — risadas da garotada, dos medronhos, os perfume de algumas plantas silvestres que me habituei a ver no monte — do rosmaninho, das estevas, do alecrim, do tomilho, do poejo, dos orégãos, da nêveda e até da irritante arruda — esses paladares e esses aromas sempre tiveram o condão de me transportar aos tempos da minha meninice…» (Fernando Campos, A Casa do Pó, Lisboa, Difel, 1986, pp. 15-16).
Apesar de a resposta ser bastante longa, continuo na dúvida se terei respondido ao que o consulente pretendia…