DÚVIDAS

Novamente a analepse

Preciso de ajuda, por não me ocorrer, sobre uma (ou várias) figura de estilo em que o sentido seja «falar do passado».

Acontece que estou a escrever as minhas memórias e necessito de empregar termos que remetam os leitores ao meu passado.

Sei que Fernando Pessoa, nas suas obras, emprega figuras de estilo que nos remetem ao seu passado.

Espero que esta minha explicação vos ajude a ajudarem-me.

Como não me ocorrem os ditos termos, não me ajuda muito procurar nos dicionários o que não me ocorre. Todavia, se conhecerem algum dicionário de figuras de estilo, físico ou on-line, por favor, indiquem-me.

Agradecido fico, desde já, da vossa ajuda, para assim eu continuar nos meus escritos.

Resposta

Sempre que numa narrativa há referência a acontecimentos que decorreram no passado, distantes do tempo em que a acção decorre, sabemos que estamos perante uma analepse, um processo de representação que corresponde a um recuo no tempo narrado. Mas a analepse não é um recurso estilístico nem uma figura de estilo. Portanto, não sabemos em que medida esta informação poderá ser útil ao consulente, uma vez que tal palavra, enquanto termo literário, não é usada senão no domínio da análise literária para classificar essa técnica do narrador. Ninguém dará, num texto narrativo, algo como «agora vou recorrer à analepse». Mas é esse o processo de representação do texto do consulente que, centrado nas suas memórias, recua no tempo, procurando representar vivências passadas.

Ora, se o objectivo da sua escrita é o de contar as suas memórias, penso que estaremos perante um texto narrativo de cariz  autobiográfico em prosa. Ou será que prefere a poesia, usando a lírica? Também se trata de um texto na primeira pessoa, girando à roda da subjectividade do eu, dos seus pensamentos, emoções e sensações. É este o tipo de texto da maioria da poética de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos). Mas, embora tenha poemas cuja temática seja a nostalgia do passado (mais propriamente da infância perdida), em que relembra excertos de uma vivência remota, a sua obra não se centra nas memórias. Centra-se, sim, em si próprio, numa tentativa de auto-análise e na procura lúcida e obsessiva de autoconhecimento. Aliás, essa é uma das inquietudes de muitos dos artistas. Pois, ao recordar o passado, o sujeito poético/de enunciação estabelece relações com o seu presente, a sua realidade actual. Será também este o objectivo da escrita do consulente? O de procurar forma e meios de voltar (e de o recriar) ao passado?

Na poética de Fernando Pessoa apercebemo-nos de que são os sons, a música, as cores da natureza, o sentir do vento, o correr das águas do rio que têm o poder de o transportar para a infância. É pela audição (das vozes das crianças a brincar, de um sino, ou de uma certa música), pela percepção das cores das folhas e do mover do vento como sinal de mudança, assim como pela observação do movimento das águas do rio, que o sujeito poético «salta» para o passado, fazendo associações através das sensações, dos sentidos. Ora, a alusão a diferentes sentidos e a diversas impressões sensoriais indica-nos a presença da sinestesia, «figura de estilo resultante da fusão de percepções relativas a dados sensoriais de sentidos diferentes» [Jacinto do Prado Coelho (dir.), Dicionário de Literatura, vol. 4, Porto, Figueirinhas, 1979]. Podemos verificar a presença e o poder de tais sensações nos seguintes exemplos:

«Quando as crianças brincam/E eu as oiço a brincar/Qualquer coisa em minh’alma/Começa a se alegrar.//E toda aquela infância/Que não tive me vem,/uma onda de alegria […]»

«Ó sino da minha aldeia,/Dolente na tarde calma,/Cada tua badalada/Soa dentro da minha alma.//[…] A cada badalada tua,/Vibrante no céu aberto,/Sinto mais longe opassado,/Sinto a saudade mais perto.»

«Pobre velha música!//[…] Recordo outro ouvir-te. Não sei se te ouvi/Nessa minha infância/que me lembra em ti.»

«Ah, como incerta, na noite em frente,/De uma longínqua tasca vizinha/Uma ária antiga, subitamente,/Me fez saudades do que as não tinha.// […] A ária é antiga? É-o a guitarra.//[…] Qual o passado que me trouxeram?/Nem meu nem de outro, é só passado./Todas as coisas que já morreram/A mim e a todos, no mundo andado.»

«No entardecer da terra/O sopro do longo Outono/Amareleceu o chão./Um vago vento erra,//[…] Soergue as folhas, e pousa/As folhas, e volve, e revolve,/E esvai-se inda outra vez./Mas a folha não repousa, […] Eu já não sou o que era;/O que sonhei, morri-o; […]»

«O tempo que eu hei sonhado/Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado/Foi só a vida mentida/De um futuro imaginado.//Aqui à beira do rio/Sossego sem ter razão./este seu correr vazio/ […]/ A vida vivida em vão.//Ondas do rio,tão leves/que não são ondas sequer/Horas, dias, anos, breves/Passam – verduras ou neves/Que o mesmo sol faz morrer.// […] Leve som das águas lentas,/Gulosas da margem ida,/Que lembranças sonolentas/De esperanças nevoentas! […]»

O heterónimo Álvaro de Campos regressa ao passado a partir de datas significativas — a do seu aniversário — e da lembrança dos espaços físicos — a casa da infância —, marcando os pormenores do contraste entre as duas realidades e evidenciando a consciência da passagem do tempo como sinónimo de perda. São exemplos disso os excertos:

«No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga […] // […] Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…/A mesa posta com ais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,/O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,/As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, […]»

«Pobre velha casa da minha infância perdida! Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!/Que é do teu menino? Está maluco./Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?»

Miguel Torga usa, também, uma metáfora (e pleonasmo) bastante sugestiva — «Descer dentro de mim à fundura possível» (Miguel Torga, A Criação do Mundo, Coimbra, 1995, p. 17) — e recorre a datas simbólicas, como a do Natal, para penetrar no passado: «Natal fora de casa do meu Pai,/Longe da manjedoira onde nasci./Neve branca também, mas que não cai / Na telha vã da infância que perdi.// […] E eu a tremer de frio e de saudade/Por memórias em mim quase apagadas…» (idem, p. 149).

Por sua vez, Fernando Campos, em A Casa do Pó, um romance histórico de cariz autobiográfico, utiliza vários recursos que o remetem ao passado, dando especial destaques às sensações que o transportam para outro tempo, sobretudo as do paladar, do olfacto e da audição: «Tenho ainda nos sentidos o gosto e o cheiro do vinho novo […]. Também era assim com o pão acabado de sair do forno. Ainda oiço vozes a gritarem-me: “Pão quente […]. Identifico sensações da infância no tempo que não no espaço. […] o gosto de certos frutos, de determinada casta de uva, destes figos, daqueles albricoques, das amoras […] — risadas da garotada, dos medronhos, os perfume de algumas plantas silvestres que me habituei a ver no monte — do rosmaninho, das estevas, do alecrim, do tomilho, do poejo, dos orégãos, da nêveda e até da irritante arruda — esses paladares e esses aromas sempre tiveram o condão de me transportar aos tempos da minha meninice…» (Fernando Campos, A Casa do Pó, Lisboa, Difel, 1986, pp. 15-16).

Apesar de a resposta ser bastante longa, continuo na dúvida se terei respondido ao que o consulente pretendia…

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