Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«... Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os seirões das hortaliças; varria-se devagar a testada das lojas; no ar macio morria à distância um toque fino de missa.»

Pretendia saber quais os recursos estilísticos, a sua expressividade e os respectivos exemplos existentes neste excerto.

Obrigada.

Resposta:

Vários são os recursos estilísticos presentes neste excerto de Os Maias, de Eça de Queirós:

— riqueza em adjectivação (com presença de dupla e tripla adjectivação) de valor sugestivo: «manhã muito fresca,  toda azul e branca»; «lindo sol»; «barras alegres de claridade dourada», evidenciando a preocupação do narrador em passar ao leitor  o ambiente, a luminosidade,  as cores, o movimento do quadro representado. Ao procurar recriar de forma tão rica o universo representado, recorrendo ao pormenor, o visualismo sobressai;

— a sinestesia, presente em «manhã muito fresca, toda azul e branca», «lindo sol que não aquecia»,  «varria-se devagar», «no ar macio», «morria à distância um toque fino de missa», sugerindo várias sensações ao leitor: a frescura agradável do ambiente (táctil) associada às cores (visual) e ao sol, a cadência ritmada do varrer e o som distante do sino (auditiva);

— a hipálage em «e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade» uma vez que aqui é valorizada «a impressão pura, a percepção imediata, tirando o maior partido da cor e da luminosidade» (Dicionário de Termos Literários), evidenciando não «o objecto em si, mas o efeito que provoca no observador» (idem). Este é um dos exemplos da transposição de qualidades tipicamente queirosiana;

— a sinédoque e a personificação (ou animismo) em «Lisboa acordava», pois está aqui implícita a «transferência de significado de uma palavra para outra, por uma relação de contiguidade (o todo pela parte)» (João David Pinto Correia, «A expressividade na fala e na escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 504), uma vez que o espaço físico Lisboa represen...

Pergunta:

Por que em poesia, após as reticências, ora são usadas letras maiúsculas, ora... minúsculas? Nas trovas a praxe é usar apenas o primeiro verso em letra maiúscula, mas... e a pontuação?

E quando usar as reticências?

Resposta:

Sobre o facto de que, e retomando as palavras do consulente, «em poesia, após as reticências, ora são usadas letras maiúsculas, ora... minúsculas», não nos podemos esquecer de que o texto poético — assim como todo o texto literário — goza do estatuto da licença poética, ou seja, da liberdade de escrita, que o liberta das restrições às quais todo o outro tipo de discurso/texto está sujeito — o de seguir as normas linguísticas. Assim, é comum surgirem no texto poético construções e «estruturas desconhecidas da língua falada» (Alycia Yllera, Estilística, Poética e Semiótica Literária, Coimbra, Almedina, 1979, p. 210), podendo a linguagem poética «explorar factos inexistentes na língua quotidiana sem ser por isso antigramatical, agramatical ou não-gramatical» (idem).

Tratando-se de um caso relacionado com a pontuação — o da arbitrariedade do uso da maiúscula ou de minúscula após reticências — em poesia, portanto, de um texto que não foi construído sob uma perspectiva lógica, a de um texto comum, devemos ter em conta que nos encontramos perante um tipo de texto que se encontra num outro plano — o poético —, marcado pela subjectividade, pela simbologia e pela plurissignificação. Enquanto poesia, goza do estatuto de diferença própria de toda a obra de arte — o da liberdade poética —, pois a escrita poética/literária move-se, precisamente, no universo da criação do sujeito poético, não estando constrangida à utilização normativa do padrão. Por isso, quando nos deparamos com estruturas invulgares num texto literário, não poderemos esquecer-nos de que «a gramática que permite descrever e explicar os textos literários não se pode identificar totalmente com a gramática da língua normal» (Vítor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Coimbra, Almedina, 1983, p. 147), uma vez que «a literatura tem um sistema seu de signos e de regras de sintaxe de tais signos, sistema esse que lhe...

Pergunta:

Poderemos enquadrar as lengalengas dentro do género poético? A que tipo de texto pertencem?

Obrigado pela vossa atenção!

Resposta:

Arnaldo Saraiva, em «A Arte da Comunicação Oral» (in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991), inclui as lengalengas – a par dos contos tradicionais, das lendas, das fábulas – nos textos da literatura oral, tendo em conta o modo de transmissão desse tipo de texto e o facto de ter como suporte a memória.

Sobre a especificidade da literatura oral, diz-nos o seguinte: «Nas sociedades onde predomine a comunicação impressa ou a electrónica, como nas sociedades em que predomina a comunicação oral, há necessariamente uma grande quantidade de textos literários ou paraliterários que são transmitidos oralmente, alguns dos quais ainda hoje podem desconhecer outro qualquer suporte que não seja o da memória, embora haja cada vez mais tendência para os recolher em livros e em cassetes ou videocassetes. Entre esses textos, ou microtextos, incluem-se canções, orações, lengalengas, adivinhas, provérbios, lendas, contos, fábulas, mitos, autos, fórmulas de vário tipo, paródias, romances, anedotas, ensalmos, desafios, quadras, slogans, piropos, etc. É o conjunto destes textos que constitui a chamada “literatura oral”» (ob. cit., pp. 418-419).

Pergunta:

Estou com uma dúvida sobre textos narrativos. Quando narramos em 1.ª pessoa, usamos sempre o discurso direto? E o que são rubricas que servem de orientação para atores e diretor?

Obrigada!

Resposta:

Parece-nos que a consulente mistura duas categorias do texto narrativo na primeira questão que nos apresenta: a do narrador e a do discurso (modos de representação narrativa).

Relativamente ao narrador, este pode classificar-se tendo em conta duas perspectivas:

a) Quanto à presença ou lugar na acção ou diegese, segundo Gérard Genette em Discurso da Narrativa (1972), há vários tipos de narrador:

a.1) narrador autodiegético — narrador de 1.ª pessoa que narra uma acção que  gira à roda de si próprio. Neste caso, o narrador acumula a categoria de personagem principal (ou protagonista), pois é «aquele que narra as suas próprias experiências como personagem central dessa história» (Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia (org.)). Tratar-se-á, então, de uma narrativa autobiográfica, de um romance autobiográfico.

a.2) narrador homodiegético — narrador de 1.ª ou de 3.ª pessoa «que, não sendo personagem principal da história, é ele que narra os acontecimentos a ela inerentes» (idem). Estando presente na acção, pode ser uma personagem secundária ou até um figurante.

a.3) Narrador heterodiegético — «aquele que, não fazendo parte da história, a narra» (idem).

b) Quanto à focalização, termo proposto por Gérard Genette, «também designado por “ponto de vista” (teóricos anglo-americanos), “foco narrativo” (em especial, no espaço brasileiro), “foco de narração” (C. Brooks e R. P. Warren), “visão” (J. Pouillon e T. Todorov, embora este também use “aspecto”), “...

Pergunta:

Gostaria de saber qual o diminutivo da palavra canário.

Resposta:

Tanto o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) como o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001), da Academia das Ciências de Lisboa, registam a forma canarinho («De canário + suf. -inho»).

No entanto, e apesar de o sufixo -inho (tal como os sufixos -(z)inho e -ito) ser dos «principais sufixos diminutivos empregados em português» (Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 13.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1997, p. 92), a palavra canarinho designa, também, uma determinada espécie de canário — a do «canarinho-do-mato» e, para além deste, tem ainda outros significados associados ao «conjunto de cores no qual se destaca o amarelo-canário» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), como é o caso da selecção brasileira de futebol. Por isso, o termo caraninho é usado para designar o que «pertence ou diz respeito a selecções desportivas brasileiras, especialmente de futebol», aquele «que apoia as selecções brasileiras», enfim, tudo o que é «relativo a esse time ou que diz respeito a ele»: «Os avançados canarinhos. deslumbraram o público.»¹

Por sua vez, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (ob...