Eunice Marta - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Eunice Marta
Eunice Marta
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Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre (Mestrado Interdisciplinar em Estudos Portugueses) pela Universidade Aberta. Professora de Português e de Francês. Coautora do Programa de Literaturas de Língua Portuguesa, para o 12.º ano de escolaridade em Portugal. Ex-consultora do Ciberdúvidas e, atualmente, docente do Instituto Piaget de Benguela, em Angola.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na obra de Eça de Queirós A Cidade e as Serras, encontra-se a seguinte frase: «No dia, entre todos bendito, em que a Pérola apareceu à barra com o Messias (...).»

Quais as figuras de estilo presentes?

Estou em dúvida se serão sinédoque e metonímia.

Resposta:

Neste excerto de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, verifica-se que o narrador preferiu usar o nome da fragata — «Pérola» — em que D. Miguel regressa a Portugal (talvez porque tal nome represente algo precioso, apropriada ao estatuto do príncipe) em vez de dizer simplesmente «fragata». Trata-se, então, de uma sinédoque, pois há uma relação de inclusão entre os dois termos —  «Pérola»  e  «fragata» —, formando o nome — «Pérola» — parte da fragata, da realidade/do objecto que representa.

Por sua vez, nesse excerto existe, também, a metonímia na utilização de «o Messias» para substituir «D. Miguel», porque o narrador verbaliza dessa forma a devoção que D. Jacinto Galeão nutre pelo príncipe D. Miguel, que o salvou da situação constrangedora em que se encontrava após aquele ter escorregado e desabado no lajedo, situação a partir da qual  «aquele gordíssimo e riquíssimo» D. Jacinto passou a considerar o príncipe como o “seu salvador”, referindo-se-lhe como «anjinho» — «a gemer de saudades do anjinho, a tramar o regresso do anjinho» —, tornando-se no «seu Deus».

Ao escolher a palavra «Messias» para designar o príncipe idolatrado pela personagem, o narrador tinha consciência da «função importante dol recurso estilístico ou estético [que estava a usar], porque se presta a destacar aquilo que num determinado contexto é essencial no conceito designado», ou seja, «sobrepondo à designação da realidade descrita uma informação sobre a forma especial em que o falante [a personagem] concebe tal realidade»1 — o estatuto do príncipe D. Miguel tinha ascendido para o campo do sagrado, pois tinha adquirido o grau de «Deus», de «Messias», de anjo.

As...

Pergunta:

A análise de Eunice Marta em Os Lusíadas: aposto, sinestesia, hipérbole, anástrofe é magnífica; quanto à hipérbole, tal foi o exagero de Camões, que poderia ser classificada, "hiperbolicamente", como auxese.

Resposta:

Como elemento da equipa do Ciberdúvidas, agradeço as palavras de apreço que nos dirigiu por uma resposta sobre dois excertos de Os Lusíadas, em que se explica o sentido de um aposto e o da presença das figuras de estilo, de entre as quais é indicada a hipérbole no verso «Que o mundo pareceu ser destruído!», figura que surge também, frequentemente, designada como exagero.

Mas, se fizermos uma análise mais profunda, dar-nos-emos conta de que, tal como o consulente propõe, essa hipérbole transparece uma ideia de amplificação1 construída numa «lógica de progressão significante»: a surpresa perante o inesperado, a rapidez e a violência «da grande e súbita procela»,  os gritos do mestre, o barulho da força dos «ventos indinados», o ruído do rasgar da vela em pedaços de tal forma horrível, que «o mundo pareceu ser destruído». Há um evoluir da narração através das sensações vividas  pelos marinheiros provocadas, sobretudo, pelo crescendo da violência dos sons que dominam o ambiente.

Tendo em conta que essa amplificação «se concentra no desenvolvimento ou consolidação de uma ideia, apresentando-a sob todos os pontos de vista possíveis», pode tomar o nome antigo de auxese – do gr. aúxesis, «crescimento» –, uma forma de hipérbole» (E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, org.).

  
1 Amplificação, «figura de retórica (amplificatio) que consiste no desenvolvimento de um facto ou de uma ideia, destacando ainda mais as suas particularidades. Trata-se de um recurso frequente na épica, na tragédia e na oratória, estudado pelos retóricos antigos, desde Aristóteles a Cícero e Quintiliano, sempre com o sentido de “realçar u...

Pergunta:

Qual é o aumentativo de camarão?

Resposta:

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) esclarece-nos sobre o uso do termo camarão em Portugal, precisando que «esta palavra é usada em Portugal para os camarões de pequeno porte; os maiores têm denominações específicas [como] gamba, carabineiro, etc.»

De qualquer modo, apesar de as palavras gamba e carabineiro designarem camarões de maior porte, não se trata de aumentativos de camarão. Em primeiro lugar, porque designam um determinado tipo de camarão, como se pode verificar nos textos explicativos sobre gamba, que tem etimologia própria, e sobre carabineiro:

gamba — «camarão que remonta através do catalão gamba, a um latim vulgar gambarus (séc. VI) do latim cammărus/gambărus, i, caranguejo do mar, lagostim, camarão da família dos peneídeos (Parapenaeus longirrostris) encontrado em águas profundas do Mediterrâneo e do Atlântico» (ob. cit.)

carabineiro — «variedade de camarão graúdo que, depois de cozido, apresenta forte coloração vermelho-escura» (idem).

Pergunta:

Gostava de saber o significado de:

— Água corrente não mata gente.

— Água detida, má para bebida.

— Água fervida tem mão na vida.

— Com malvas e água fria, faz-se um boticário num dia.

— Quem se lava e não enxuga, toda a pele se lhe enruga.

— Água mole em pedra dura tanto dá até que fura.

Resposta:

Todos sabemos que dos provérbios transparece a sabedoria popular, fruto da experiência de vida, sabedoria essa que tem sido transmitida, geralmente, por via oral, das gerações mais velhas às mais novas, passando-lhes, deste modo, ensinamentos para as mais diversas situações. Os provérbios funcionam, portanto, como um conselho verbalizado através de uma situação que pretende ser exemplificativa.

Atento aos cuidados com a saúde e ao bem-estar, o povo preocupou-se em passar as suas lições através dos provérbios, usando, sobretudo, as qualidades preventivas e curativas da água e de algumas plantas. Sobre isto, Alexandre Parafita e Isaura Fernandes, em Os Provérbios e a Cultura Popular (Vila Nova de Gaia, Gailivro, 2007), esclarecem-nos, quando nos dizem que, «tal como a medicina popular é o resultado de vivências acumuladas do homem do povo na sua relação com a observação e a cura dos seus males e mazelas, também os provérbios procuram traduzir, de uma forma sintetizada, todo esse caudal de saberes terapêuticos consolidados no tempo».

Tratando-se a água de um elemento natural, a sua presença e do seu culto é bastante comum, estando nos provérbios realçadas as suas propriedades curativas, a par dos cuidados a ter com esta dádiva da natureza. Por isso, nos provérbios em que surja como referência, há «como que um aviso de que a água, não sendo pura, é prudente fervê-la, pois, para além dos atributos que ganha nesse estado, tem boas garantias de haverem sido eliminadas bactérias ou microrganismos nocivos à saúde». A exemplificar o conselho da necessidade de se ferver a água como prevenção para a saúde e a longevidade há vários provérbios muito semelhantes: «Água fervida aumenta a vida», «Água fervida tem mão na vida», «Água quente dá saúde ao ventre».

Tal como o hábito de se ferver a água, as qualidades da água corrente como...

Pergunta:

Por favor identifiquem nos seguintes frases algumas figuras de estilo:

«Tinha das mulheres lindas as graças belas, infindas de encantos, encantos mil.»

«E no seu todo brilhava o ar mais doce e gentil.»

Por outro lado aprendi que num texto poético se expressa o eu, sentimentos e por aí adiante. Será possível um texto poético ser descritivo?

Como identificar o sujeito poético dum texto poético? Que metodologia seguir para alcançar esse objectivo?

Resposta:

Relativamente às figuras de estilo presentes nas frases apresentadas pelo consulente:

Sobre a primeira frase — «Tinha das mulheres lindas as graças belas, infindas de encantos, encantos mil»:

Antes de mais, a construção da frase — decerto intencional — gera ambiguidade, pois pode ter duas leituras:

a) O sujeito poético (se for um sujeito de primeira pessoa/eu de um texto lírico) ou o sujeito de enunciação/narrador (se for um texto narrativo) «tinha das mulheres lindas as graças belas», graças essas que, por sua vez, eram «infindas de encantos, encantos mil», o que significa que esse sujeito poético tinha a arte/o poder de receber de todas as «mulheres lindas» não somente as «graças belas» comuns, momentâneas ou breves, mas infinitas e repletas de «encantos»;

b) o sujeito poético ou o sujeito de enunciação tem a arte/o poder de receber «as graças belas» das «mulheres lindas» que, por sua vez, eram caracterizadas também com outros atributos — «infindas de encantos, encantos mil»;

c) o sujeito do enunciado pode estar na terceira pessoa, tratando-se de um «ele» sobre o qual o sujeito de enunciação fala. Tratar-se-á, então, de um «ele» que é objecto/alvo de atenção do sujeito de enunciação pela singularidade do seu poder de sedução junto de uma elite de beleza feminina. Neste caso, devido a esse atributo invulgar, o sujeito de enunciação centra aí o seu olhar — e o seu texto —, revelando a admiração que sente por «ele». 

Portanto, há nesta frase um jogo de palavras e de construção, o que não invalida, quer tenha um sentido ou outro, a presença das seguintes figuras e recursos estilísticos:

Anástrofe — em «Tinha das mulheres lindas as gra...