Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Sobreviveu ao massacre», «ao massacre» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Na frase «Obedeceu ao regulamento», «ao regulamento» desempenha a função sintática de complemento indireto, ou complemento oblíquo?

Resposta:

O facto de poder substituir o complemento pelo pronome pessoal lhe permite a interpretação dos complementos em questão como indiretos. Não se trata, todavia, de complementos indiretos prototípicos, pois não representam entidades humanas, nem animadas. Esta característica é apontada na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa, 2013, pág. 1175), para os verbos desobedecer, obedecer, resistir e sobreviver.

Pergunta:

Gostaria de saber se «às voltas» poderia ser considerado nalgum contexto predicativo do sujeito, nomeadamente na frase «A Maria anda às voltas», e o verbo ser considerado copulativo, como em «A Maria anda doente», ou se o grupo preposicional é um complemento oblíquo e o verbo é transitivo indireto.

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

No Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses (Lisboa, Texto Editores, 2007), andar surge como verbo principal, podendo ser transitivo direto («Ele andou 100 metros») ou transitivo indireto, com complemento oblíquo: «Ele anda a cavalo»; «A Terra anda à volta do Sol»; «Eles andam na apanha da azeitona.» Enquanto copulativo, o verbo, se for seguido das preposições com ou em, ou de adjetivo, é apresentado no mesmo dicionário como tendo valor próximo de estar: «Vê-se mesmo que andas com saudades da família»; «A casa anda em obras.» Também lhe é associado, enquanto copulativo, o valor próximo de usar, se as preposições subsequentes forem com ou de: «Os estagiários andam sempre com calças de fazenda»; «A sogra não gosta de andar de saltos altos.»

O caso apresentado não tem, como bem sugere a consulente, uma análise inequívoca. Há três possibilidades de análise:

a) considerar «andar às voltas» como um todo, porque é uma expressão idiomática;

b) partir do princípio de que andar é um verbo transitivo indireto, sendo «às voltas» um complemento oblíquo; com esta interpretação a expressão pode ter um sentido literal: «Andei meia hora às voltas antes de estacionar o carro»;

c) ou, aceitando que «anda às voltas» é equivalente a «anda perdida» ou «está à procura de alguma coisa», diremos que «às voltas» é um predicativo.

Sobre esta última análise, observe-se que o verbo andar, enquanto copulativo, é apresentado na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, como veiculando informação relativa a um estado episódico (pp. 1305 e 1312), o que, creio, acontece na expressão «andar às voltas»,...

Pergunta:

A propósito de minha consulta respondida pela professora Edite Prada em 7/3/2014, ainda ficaram obscuros (pelo menos, para mim) aspectos referentes à concordância verbal na frase que apresentei. Em virtude disso, volto ao assunto com novas frases, de estrutura semelhante.

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem (venho) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que devo (deve) ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que continuo (continua) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que passo (passa) a ser eu mesmo.»

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que começo (começa) a ser eu mesmo.»

A minha dúvida, em suma, seria a seguinte: se, quando o verbo ser é usado numa estrutura de oração relativa + pronome pessoal, a concordância se faz com esse pronome, o mesmo não deveria ocorrer quando se trata de uma conjugação perifrástica com o mesmo verbo ser?

Cumpre dizer que a locução «vir a ser» (motivo de minha pergunta inicial), no Aulete Digital, tem as acepções de «chegar a ser, converter-se em»: «Se levasse a sério o estudo, viria a ser um grande pianista»; e de «ser, tratar-se de»: «Aquela que você criticou vem a ser minha mulher.»

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Agradeço ao prezado e ilustre consulente a possibilidade de refletir de novo sobre uma estrutura que constitui um desafio e que, simultaneamente, não é de fácil, nem unívoca, interpretação.

Curiosamente, na análise que anteriormente fiz, não tive em conta a designação tradicional de conjugação perifrástica, que muitos estudiosos têm vindo a abandonar nos seus trabalhos, preferindo outro tipo de abordagens, falando de modalidade, de aspeto… Se considerarmos a frase que vem sendo objeto de análise, veremos que, efetivamente, aquela frase específica não encaixa nas definições prototípicas da conjugação perifrástica. E muito provavelmente é esta posição marginal, digamos assim, que permite a não- obediência às normas da concordância preconizadas para a conjugação perifrástica. Foi esse pressuposto que me levou a propor uma análise distinta, e que não pretende ser definitiva (não teria como…), nem indiscutível. É minha convicção de que a expressão «vir a ser», podendo embora, em outros contextos, ser interpretada como conjugação perifrástica típica com sentidos próximos de «chegar a ser, converter-se em, tornar-se», naquela frase não o é, aproximando-se, eventualmente, do sentido que refere em Aulete de «tratar-se de».

Assumindo que «vir a ser» na frase «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem (venho) a ser eu mesmo» tem o sentido de «tratar-se de», ou, como propõe Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (2001), p. 233, «quase o mesmo sentido do verbo principal empregado sozinho», dificilmente lhe encontraremos um valor prototipicamente perifrástico, que se materializa veiculando valores aspetuais temporais ou modais.

É esse facto, a meu ver, que possibilita a flutuação da concordância, que, parecendo-nos estranha, não deixamos de aceitar…

C...

Pergunta:

Examine-se a seguinte frase:

«O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que sou eu mesmo.»

Parece-me que a concordância está correta: o verbo ser concordando com o predicativo representado pelo pronome pessoal eu.

No entanto, nesta outra frase, com uma locução verbal: «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem [venho?] a ser eu mesmo», parece ser a concordância na terceira pessoa a mais indicada.

Gostaria de um comentário a respeito, o qual desde já agradeço.

Resposta:

Concordo com a apreciação que faz, embora tenha dúvidas acerca da função de eu, na frase em apreço e que repito como 1:

1. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que sou eu mesmo.»

Com efeito, o pronome relativo que, cujo antecedente é «seu melhor amigo», representa, do meu ponto de vista, um predicativo do sujeito que vem antes do verbo. A frase canónica seria «Eu sou o seu melhor amigo», que tem como equivalente «O seu melhor amigo sou eu».

Ao interpretarmos eu como sujeito, a concordância é inquestionável. Na segunda frase em apreço, que repito como 2, a situação é um pouco mais complexa.

2. «O professor foi veementemente criticado por seu melhor amigo, que vem [venho?] a ser eu mesmo.»

A frase integra uma expressão relativamente fixa («que vem a ser»), que, por isso mesmo, não é de fácil interpretação sintática, e qualquer análise feita sem a conveniente e profunda investigação pode soar a artificial. «Vir a ser», embora seja, efetivamente, uma unidade de sentido, não é um complexo (ou locução) verbal constituído por um auxiliar típico e por um verbo principal. Além disso, numa construção como 2, mais do que a concordância, é o próprio uso de «vir a ser» que parece estranho…

Podemos, ainda assim, tentar analisar a frase. Assumindo que não estamos perante um complexo verbal canónico, poderemos fazer a análise de cada um dos verbos e considerar que o relativo que, ou o seu referente «seu melhor amigo», é o sujeito do verbo vir, «vem», o que justificaria a terceira pessoa. Por seu lado ser teria como sujeito eu e como predicativo do sujeito o mesmo que (

Pergunta:

Ainda na sequência das nossas discussões a propósito do predicativo do sujeito e após ter feito uma leitura concentrada da referida gramática de Lindley Cintra, devo ainda colocar algumas questões

(i) «Rico, desdenhava dos humildes.»

«Rico» trata-se de um predicativo do sujeito em construção elíptica, ou de um modificador apositivo do sujeito nulo subentendido (à luz do DT, está claro)? Porquê? Quando temos construções elípticas deste género (se é que as temos...)? Se mo perguntassem, diria que só ocurriam em frases sem qualquer verbo...

Obrigado.

Resposta:

Uma das características das línguas vivas prende-se com a capacidade que qualquer falante tem de produzir, e compreender, enunciados nunca antes ouvidos ou pronunciados. Tal facto implica que, por vezes, ocorram produções linguísticas que se não enquadrem com facilidade nas regras de organização sintática. Surgem, assim, aqui e ali, possibilidades diversas, e igualmente legítimas, de interpretação de algumas frases. Surge, também, a necessidade de articular a profundidade da análise com a competência metalinguística dos destinatários, sobretudo se se trata, como parece ser o caso, de alunos do ensino básico ou secundário…

No caso de «Rico, desdenhava dos humildes», uma das interpretações, eventualmente a mais fácil para um jovem, será a seguinte:

(i) «Rico, desdenhava dos humildes.»

Sujeito – nulo subentendido – «ele»;

     Modificador apositivo – «rico»;

Predicado – «desdenhava dos humildes»;

     Complemento oblíquo – «dos humildes».

A interpretação de «rico» como modificador apositivo justifica-se pelo facto de estar isolado por vírgula. Se o sujeito estivesse expresso, «rico» viria, igualmente, isolado por vírgulas:

«Ele/O Mário, rico, desdenhava dos humildes.»

Note-se que o modificador apositivo tem, frequentemente, uma interpretação causal, ou explicativa, o que é visível em análises com a de Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, 2002, p. 457, segundo a qual estruturas deste tipo são «apostos circunstanciais»:

(ii) «Paulinho, amigo, tirou-o da dificuldade.»

A poss...