Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Devido a um anúncio publicitário, eu e o meu pai ficámos com uma ideia diferente do significado do que estava escrito no anúncio!

A frase é:

«Um dia vais achar que sair à noite é ir deitar o lixo fora. (Quando esse dia chegar, não lhe ligues).»1

A parte da segunda frase «não lhe ligues» refere-se a quem?

A uma terceira pessoa subentendida, ou ao «dia»?

Desde já agradeço a resposta!

1 Na referida campanha publicitária, feita em Portugal, a frase que realmente ocorre é «quando esse dia chegar, não lhe fales».

Resposta:

A linguagem publicitária é prenhe de duplos (e triplos!) sentidos.

As frases em apreço integram um conjunto maior de situações, ou previsão de situações, em que a primeira parte difere, e a segunda («Quando esse dia chegar, não lhe fales») se repete, tal como se repete o apelo «Mantém-te original».

No caso da frase que se repete, gramaticalmente, porque a presença de um pronome exige a ocorrência do seu antecedente, ou seja, do nome a que se refere, o pronome lhe reporta-se a, ou substitui, «esse dia».

No entanto, importa ter em conta que, face ao uso que fazemos da nossa língua, existem dois tipos de criatividade:

a) A criatividade linguística, comum a todos nós, que nos permite fazer frases novas nunca antes ditas ou escritas, obedecendo a todas as regras intrínsecas da gramática;

b) A criatividade artística (literária ou publicitária), que vive, muitas vezes, de segundos sentidos, da exploração de aspectos marginais às regras gramaticais. Nem todos conseguem este tipo de efeito.

Nas frases «Um dia vais achar que sair à noite é ir deitar o lixo fora. Quando esse dia chegar, não lhe fales», há recurso aos dois tipos de criatividade. São duas frases correctas do ponto de vista gramatical, ou sintáctico. Do ponto de vista do referente real, ou seja, da realidade a que se reportam, é que surgem interpretações diversas. Literalmente, ou seja, à luz da criatividade linguística, o lhe reporta-se como já referi a «esse dia», único nome existente na frase e susceptível de ser substituído por pronome. No entanto, essa associação é estranha, uma vez que, no mundo real, os dias não são entidades que possam ser interlocutoras numa conversa. Do ponto de vista da criatividade ar...

Pergunta:

Será correcto/aceitável dentro da norma da língua portuguesa da variante europeia utilizarmos esta expressão na escrita «Diz ele/ela»? Oiço essa expressão sistemática na boca dos falantes activos da língua portuguesa no contexto cabo-verdiano.

Resposta:

Antes de mais, gostaria de salientar que o português adquire, em cada variante, especificidades que o enriquecem, ainda que impliquem o risco de uma análise inadequada por parte de quem está mais habituado a outra variante. Pretendo desta forma salvaguardar alguma potencial incorrecção que possa ocorrer nesta resposta.

Em relação à questão que apresenta, assim, sem contexto, dir-lhe-ei que há situações em que a expressão em apreço poderá ser utilizada na norma culta do português europeu. Imagine a representação escrita de um diálogo entre duas pessoas em que uma delas reage e diz algo, sendo descrita a sua reacção e registado em discurso directo o que essa pessoa disse. Aí é não só aceitável como também correcto colocar «diz ele(a)». Exemplifico:

«O João corre para os recém-chegados.
— Sejam bem-vindos! — diz ele.»

Se a expressão ocorre em outro tipo de contextos, precisaria de exemplos concretos para me pronunciar. Além disso, a minha posição teria sempre como base a variante que conheço melhor, ou seja, o português de Portugal.

Pergunta:

Na formação de palavras, como se classifica a palavra mundo? Composta? Derivada?

Resposta:

A palavra mundo é uma palavra simples, que provém do latim mundu e na qual não entram processos de formação, nem por composição, nem por derivação. Aliás, esta é uma palavra muito interessante que, além de nome, pode ser usada como adjectivo, significando «limpo». Daí o adjectivo derivado por prefixação imundo.

Pergunta:

Nas seguintes frases, gostaria de saber se «em ti», na primeira, e «num congresso», na segunda, são considerados complementos indirectos, apesar de não serem precedidos pela preposição a.

1.ª – «Eu confio em ti, meu irmão.»

2.ª – «Sete sábios participaram num congresso.»

Resposta:

O complemento indirecto (CI), além de ser, como refere, introduzido pela preposição a, tem a característica de poder ser substituído pelo pronome pessoal lhe. Em frases como «ele comprou uns sapatos ao irmão», o CI «ao irmão» pode ser substituído pelo pronome pessoal: «ele comprou-lhe uns sapatos.»

Esta substituição não é possível em nenhuma das frases que indica, pelo que não estamos, em nenhum dos casos, perante um CI.

1 – *«Eu confio-te, meu irmão.»
2 – *«Sete sábios participaram-lhe.»

 

Note-se que qualquer destes verbos, noutros contextos, poderia ter um CI:

3 – «Eu confio-te, meu irmão, esta árdua tarefa.»
4 – «Sete sábios participaram-lhe que o seu trabalho era excelente.»

 

No entanto, qualquer das expressões («em ti» e «num congresso», respectivamente) é necessária para a plena realização e compreensão do predicado das frases em que está integrada. São ambos, por isso, complementos oblíquos, uma vez que estão ligados ao verbo por uma preposição, sem, todavia, serem CI.

Pergunta:

É possível explicar por palavras simples os mecanismos de estruturação textual (coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, intertextualidade e informatividade)?

Obrigada.

Resposta:

Antes de mais, importa ter em conta que a simplicidade de qualquer definição pode facilitar a apropriação da mensagem, mas não dispensa o envolvimento nem a pesquisa pessoal se se pretende uma aquisição de conhecimento eficaz. São muitos os processos que podem ser desencadeados para garantir esse envolvimento. Por exemplo, começar por ver quais os significados que o dicionário aponta para estes termos ou outros que lhes são próximos. Estou a pensar, por exemplo, em situacionalidade, que poderá não ocorrer num dicionário comum, mas nesse dicionário encontrará, com certeza, situação e situacional. Depois, importa tentar identificar o sentido específico que as palavras adquirem em áreas do saber específicas. Para a maioria dos termos que procura, um recurso possível — entre tantos outros que a Internet coloca, hoje, ao nosso dispor — é o Dicionário Terminológico, na parte C, Análise do Discurso, Retórica, Pragmática e Linguística Textual.

O compulsar destas ferramentas vai permitindo ao estudante aperceber-se da complexidade das questões e vai facilitando uma apropriação eficaz.

Dito isto, tentarei explicar cada um dos termos em causa.

Coerência
Um texto é coerente se leitor o reconhecer como possível na realidade que retrata. Por exemplo, se se tratar de um conto que fale do Pólo Norte, não será lógico ver as personagens em biquíni. Os aspectos que contribuem para a coerência de um texto passam pela associação a um (ou vários) lugar onde as personagens se movem e agem de acordo com o tempo e com a situação em que são colocadas. O recurso a advérbios de tempo e de lugar e os próprios tempos verbais, bem como a descrição dos lugares e o comportamento das personagem, são aspectos que...